domingo, 12 de outubro de 2025

1.000 PALAVRAS — Que Mistério tem Clarice? Sérgio Abranches



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Susto definitivo

Há sustos que são definitivos. Deixam uma pequena bola de gelo perene incrustada naquela parte da alma que fica na altura do estômago. O susto a pegou já na rua, quando deixou o prédio. De repente, o mundo desapareceu em uma nuvem tempestuosa de dúvidas. Perdeu o rumo naquela neblina espessa e foi então que sentiu a pequena bola de gelo congelar o ponto crucial do miolo de seu ser.

— Quanto tempo?

— Um ano… dois… até cinco — respondeu seu médico pessoal, Luiz Rémy, com anuência do dr. Rabello, o especialista.

— Como são os tratamentos?

Quem respondeu desta vez foi o dr. Rabello:

— Em alguns casos recorre-se a cirurgias cada vez mais agressivas, para tentar eliminar o máximo de tecido canceroso. Mas não atende as suas condições. Radioterapia pode ajudar a reduzir o tumor e o ritmo de crescimento nos casos de detecção precoce. Não é o que estamos vendo. O caminho recomendado é a quimioterapia.

— Quanto tempo sem limitações que me aprisionem a uma cama ou cirurgias invasivas e mutilações? Falo de tempo ativo, consciente, mobilidade, lucidez, autonomia, livre-arbítrio.

— É um prognóstico difícil, mas há casos de cura e temos meios de melhorar sua qualidade de vida. Um ano, um ano e meio, dois anos, até cinco — Rémy continuou. — É imprevisível. Há muitos riscos. Com muitos cuidados e períodos menos ativos, de fraqueza, é possível garantir a qualidade de vida e até mantê-la por alguns anos. Há casos de pessoas que sobreviveram mais de cinco anos. Mas a localização do seu tumor e o estágio em que ele está tornam as coisas mais difíceis. Precisamos montar uma estratégia. A responsabilidade maior do tratamento será do Rabello, que é o oncologista. Como seu clínico e médico pessoal, acompanharei todo o processo.

— Não quero, não desejo, não posso ficar… ser mantida sem condições de vida ativa, digna.

— É um direito seu. Tudo depende de como a doença vai progredir. Às vezes, ela se torna dolorosa e seria necessário estabelecermos um procedimento para controle da dor, que pode exigir opiáceos. Minha preferência é sempre pela morfina. É possível fazer esse controle sem necessidade de internação, sem que você precise ficar permanentemente sob o efeito da droga.

— Se isso acontecer, interrompa todo tratamento que prolongue minha vida. Deixe-me ir…

— Farei o máximo para atender à sua vontade, dentro do que a lei permite e a ética aconselha.

— Não há possibilidade de que não sejam esses o diagnóstico e o prognóstico?

— Não. Mas você tem direito a uma segunda opinião, a quantas opiniões quiser. Posso lhe indicar os melhores, em São Paulo, nos Estados Unidos, na França. Não somos infalíveis, temos nossos limites.

— Não precisa. Não vou pesquisar o inevitável. Faremos como vocês disserem. — Ficou calada por um tempo. Os dois médicos respeitaram seu silêncio. — Rémy, qual o seu prognóstico. Seja sincero, você me conhece. Já é dor extrema receber essa notícia. Pior seria não ter ideia de quanto tempo ainda me resta…

— Um ano e meio… dificilmente mais que dois anos.

Ela olhou para o dr. Rabello:

— É este o meu prognóstico também.

Deixou o consultório sem pensar muito no que haviam falado. Quando saiu do vestíbulo sombrio para o dia ensolarado e ameno do outono carioca, o susto a pegou. Perdeu a noção de onde estava. O ar lhe faltou. Precisou encostar-se à parede do prédio para que a vertigem não a derrubasse. A frase que continha sua vida toda “Um ano e meio…” ecoava em sua cabeça. Não percebia mais o que fazia. Não viu quando acenou para um táxi, nem ouviu quando disse “Urca, por favor” ao motorista. Quando chegaram e o motorista lhe perguntou o endereço, disse “aqui”, sem pensar. Ele parou. Desceu do táxi, numa esquina duas quadras antes de sua casa, sem sequer se dar conta de ter pago a corrida. Fazia tudo como se estivesse hipnotizada, maquinalmente. Olhava sem enxergar. Caminhou até sua casa levada pelo instinto. Entrou. Atravessou a varanda e foi até o jardim interno. Ficou lá, parada. A titônia, amarela e exuberante, brilhava. Abelhas, vespas e borboletas pousavam em seus pistilos generosos. Mas Clarice não via aquela celebração outonal. O espanto a dominava e a única parte sensível de seu corpo era aquela na qual o gelo incorpóreo congelava sua alma e paralisava sua mente. Era toda susto. Demorou, nunca soube quanto, olhando para muito além do que Einstein chamou de delírios óticos da consciência cotidiana. Olhava o infinito e, pela primeira vez, conseguia vê-lo com toda a nitidez. Mirando-o de frente e em toda a sua extensão, o infinito não a amedrontava. Também não temia olhar para o marco que demarcava seu próprio fim no infindável. Saber que estava para chegar àquele destino, aos cinquenta e oito anos de idade, era um susto incomensurável. Mas não sentia medo. E foi a ausência do medo que a libertou daquele transe, fez o choque passar, deixando-a retomar o pensamento. A bolinha de gelo permanecia lá, onde se aconchegara, enviando ondas de frio por sua espinha. Ela não a deixaria esquecer que sabia agora o limite quase exato de sua vida.

Conseguia não ter medo. Mas não se livraria nunca da sensação desconhecida, desoladora e definitiva de que o termo de sua vida se aproximava célere. Foi-se o choque, ficou o susto. Este seria definitivo enquanto durasse. Pôde, afinal, pensar no que tinha pela frente. Vida abreviada. Queria dedicá-la aos amigos queridos e aos filhos, Jorge e Marina. Pensou com ternura neles. Tão diferentes e tão interessantes, cada um a sua maneira. E tinha uma decisão grave a tomar que havia se tornado inadiável. Seria muito mais difícil do que as relacionadas ao tratamento. Tratar-se era algo irrecusável, real e concreto. O que precisava resolver a obrigaria a atravessar o denso véu que cobria seu passado, até o decisivo momento que nunca havia pensado revisitar. Mas nele não habitavam apenas suas memórias, apagadas com firme precisão. Lá estava aquela que havia sido sua proteção e seu conforto em anos decisivos e que abandonara e fizera sofrer.

Aquela não havia sido sua primeira consulta com o médico Luiz Rémy, sobre o mal-estar diferente que havia começado a sentir. A primeira também havia sido penosa, embora amigável como sempre. Quando ligou para lhe contar dos incômodos, o médico disse que precisava vê-la, não era algo que pudesse resolver pelo telefone com um analgésico e um relaxante muscular. Ao entrar no consultório, o olhar de Rémy mostrou que suspeitava de algo mais grave. Pediu muitos exames e uma preocupante tomografia. Perguntou-lhe o que era. Ele respondeu que suspeitava de um tumor. Quis acalmá-la, suspeitas nem sempre se confirmam, disse. Mas ela conhecia a qualidade de seus diagnósticos. Ele pedia exames mais para confirmar que para saber. Na segunda consulta disse-lhe que tinha câncer no pâncreas, provavelmente em estágio avançado. Havia chamado o oncologista, Paulo Rabello. Foi quando tiveram a conversa que lhe provocou o maior susto da vida. O inesperado lhe fazia uma surpresa angustiosa, deixando sua alma em sobressalto. Choque sem medo que a afogou em um oceano de indagações.

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Que Mistério tem Clarice?

Sérgio Abranches

São Paulo: Editora Globo, 2014

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O ano é 2012. Clarice, escritora e professora bem-sucedida, recebe uma notícia inesperada. Tem um tumor maligno e só mais alguns meses de vida. Final dos anos 60. Uma adolescente sai de uma delegacia, em São Paulo, com o vestido encharcado de sangue. Seu rumo é a clandestinidade. Em 1972, uma moça chamada Amália visita cidades do interior de Minas Gerais, dizendo estar à procura de uma tia. Réveillon de 1978. Um casal de jovens amanhece nas areias de Ipanema sem saber que aquela noite mudaria suas vidas para sempre. O novo romance de Sérgio Abranches parte dos dias atuais para, numa viagem por tempos e paisagens distintas, narrar a história de uma mulher que acaba se confrontando com um passado que julgara esquecido. Numa trama que alia engenho e delicadeza, usa a ficção para abordar temas caros ao Brasil contemporâneo, como a culpa nos processos históricos, as faces movediças da verdade, o autoritarismo e a indiferença. Seu ponto de partida é a convivência de Clarice com os dois filhos. No momento em que ela recebe o diagnóstico, Jorge, o primogênito, está na África, fotografando. Marina está em uma cidade histórica da Boêmia, escrevendo reportagens de turismo. Logo eles se reúnem à mãe para desfrutarem momentos de cumplicidade, em longas conversas sobre literatura, filosofia e história. E é aí que se revela uma das características mais marcantes deste livro: a mistura de prosa e ensaísmo. Com referências a Kafka, Hemingway, Garcia Lorca, Hermann Hesse e Wittgenstein, os diálogos e pensamentos de Clarice dão vida a debates cheios de nuances, em busca de clareza. Com uma narrativa envolvente, o romance converge para um ponto central: qual é, afinal, o segredo de Clarice? Na teia que se desenha ao redor dessa pergunta, o autor cria um elogio à coragem, à alteridade e ao prazer de estar vivo. Ante a morte, a protagonista se volta, resoluta, para a celebração da vida e de suas contradições.

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