segunda-feira, 20 de abril de 2015

Lord Jim (Excerto) — Joseph Conrad

Peter "Toole (1965)

O Sentimento do Intolerável


"Para os brancos dos portos e os capitães de navios, ele era Jim e nada mais. Tinha outro nome, está visto, mas não queria ouvi-lo nunca pronunciar. Seu incógnito não visava a esconder uma personalidade, mas um fato. Quando o fato transparecia através do incógnito, Jim deixava subitamente o porto em que estava empregado e alcançava um outro, em geral mais afastado para o Oriente. Preferia os portos de mar, porque era um marinheiro exilado do mar, e porque possuía a teoria da Abordagem, que não pode servir a outro ofício senão ao de vendedor marítimo. Em boa ordem, partia em retirada para o sol levante e, como por acaso, mas inexoravelmente, o fato o perseguia. Assim, tinham-no visto sucessivamente, no decorrer dos anos, em Bombaim, Calcutá, Penang, Batávia, e, em cada um desses portos, ele era simplesmente Jim, o vendedor marítimo. Mais tarde, quando o seu agudo sentimento do Intolerável o escorraçou para sempre dos portos e da sociedade dos brancos, até a floresta virgem, os malaios da aldeia que escolhera na jângal para aí esconder sua deplorável sensibilidade acrescentaram uma palavra ao monossílabo de seu incógnito. Eles o chamaram Tuan Jim – Lord Jim, como se diria entre nós."


Lord Jim — Joseph Conrad

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Tesoura e Cola — Antoine Compagnon

'Ghandi with Newsprint Beard', Collage Art, by David Plunkert

Tesoura e Cola



Criança, tenho uma tesoura, pequena tesoura de pontas arredondadas, para evitar que me machuque; as crianças são muito desastradas até que atinjam a idade da razão, quando aprendem o alfabeto. Com minha tesoura nas mãos, recorto papel, tecido, não importa o que, talvez minhas roupas. Às vezes, se sou bem comportado, oferecem-me um jogo de imagens para recortar. São grandes folhas reunidas em um livreto, e sobre cada uma delas estão dispostos, em desordem, barcos, aviões, carros, animais, homens, mulheres e crianças. Tudo o que é necessário para reproduzir o mundo. Não sei ler as instruções, mas tenho-as no sangue, a paixão do recorte, da seleção e da combinação. Meu gesto desejaria ser minucioso; ponho-me a seguir o contorno das figuras, um traço negro em volta do corpo. Mas o recorte é de todos os jogos aquele que mais me deixa nervoso: serro os punhos, bato o pé, rolo pelo chão. Sapateio de raiva quando as coisas me opõem resistência, quando se recusam a submeter-se à minha vontade, rebeldes que são a se deixarem representar em meu recorte, em meu modelo de universo. Ultrapasso sempre de alguns milímetros o limite, corto as pontas de papel que se dobram sobre os ombros ou que deslizam pelas fendas do corpo, a fim de que a roupa se mantenha sobre a silhueta de papelão nu. Fico louco. Mas como poderia conseguir, se somente minha mãe dispõe, para seus trabalhos de costura, de longas tesouras pontiagudas que me permitiriam esquadriar, sem mutilar as finas linguetas? É preciso consertar os estragos, colar novamente as extremidades que faltam. Mas não tenho sequer fita adesiva. Invejo esses dois grandes privilégios das pessoas adultas, a verdadeira tesoura, pontiaguda, e a verdadeira cola, que cola tudo, até o ferro. Sou fascinado como o último índio Ishi pelos atributos que definiam, para ele, o homem branco: o fósforo e a cola. Quanto a mim, tenho somente um pequeno pote de onde me vem o odor de xarope de cevada, uma espátula leve para espalhar a pasta que tem a cor, a consistência, o cheiro e o gosto dessa sobremesa servida nos restaurantes chineses de Paris, sob a denominação apócrifa de "delícia das ilhas": Colar novamente não recupera jamais a autenticidade: descubro o defeito que conheço, não consigo me impedir de vê-lo, só a ele. Mas me acostumo pouco a pouco com o mais ou menos; subverto a regra, desfiguro o mundo: uma roupa feminina sobre um corpo masculino, e vice-versa. Compondo monstros, acabo por aceitar a fatalidade do fracasso e da imperfeição. Nada se cria. Eu parodio o jogo recortando novos elementos em papel comum que vou pintando sem levar em conta o bom senso. Isso não se parece mais com coisa alguma; não me reconheço, a mim. Mas eu amo essa "coisa alguma".

COMPAGNON, Antoine. O Trabalho da Citação. Ed. UFMG, 1996.