segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

No céu ficam os astros apenas — Almada Negreiros

José de Almada Negreiros


Cada um de nós não pode deixar de ser o próprio, e ainda que para isso lhe seja indispensável a maior das forças de vontade. Efetivamente, o que os astros mandam não é para ficar no céu. No céu ficam os astros apenas. Nós somos exatamente o que eles mandam. E, verdade verdadinha, antes obedecer aos astros do que a outros.

A nossa obediência aos astros é a um tempo involuntária e heroica. Involuntária, porque a vontade é a deles, e heroica, porque não há de ser vencida pela dos humanos. Há em cada pessoa um espírito de vitória e é o mais legítimo da sua vida íntima. Nenhuma alma em vida deixou de ser instada por este espírito de vitória. Ele é a mais bela expressão da cara humana, e a sua ausência a pior. O espírito de vitória é... o espírito de vitória não é..., e estes pensamentos gaguejavam na cabeça do Antunes como se ele fosse também gago da fala. Tinha-se-lhe ido de repente a ideia tão clara, e as palavras não tiveram tempo de a agarrar.

Quando se quer outra vez uma ideia que nos fugiu, deitamos mão de qualquer imagem que se nos apresente, a ver se ela se liga com a que tínhamos antes, assim também o Antunes reparava que nunca ninguém o tinha admirado. Foi tão sensacional para ele esta descoberta que se passou inteiro para o seu novo pensamento. Tirando os pais, naturalmente, só a Maria ficava diante dele como diante de um gênio. E então o Antunes ligou logo com a ideia perdida : o espírito de vitória tem um visor de referência imediata na admiração que inspiramos aos outros. Não há melhor compensação para a nossa vida do que a admiração dos outros pelo que merecemos, mas também não há pior momento humano do que aquele em que nos admiram sem acertar com o exato do nosso valor. A pessoa verdadeira prefere inimigos autênticos a admiradores sem pontaria. Pelo justo da admiração ou repulsa dos outros podemos verificar se vamos bem com os astros, por conseguinte se não deturpamos o sentido do espírito de vitória.

A comunicação entre humanos faz-se pela admiração. Não são as ideias o que a humanidade admira senão o próprio dos sentimentos. Ótimos ou péssimos, é relativo, e pouco importa para admirar, basta que se ajustem perfeitamente àquele que com eles se move. Nos fatos da nossa vida mandam os astros, nos nossos sentimentos mandamos nós e todos os que estiveram no nosso sangue, nas nossas ideias mandam os astros e os nossos sentimentos. Os fatos decidem, o sentimento revelam-no, a ideia são resultados de fatos e de sentimentos. Os fatos e os sentimentos não se podem sintetizar, como se faz com as ideias, mas admiráveis só os sentimentos.

O Antunes recordava a cara linda de Maria diante dele e ainda via que ela gostava dele a valer, que ela dava-se-lhe como se ele lhe correspondesse, que ele lhe correspondia de fato, mas apenas por causa dela, por causa daquela sua maneira de se dar total, leal, fatal, por ser impossível dissuadi-la disso, por ser assim precisamente que os astros mandavam a ambos. Não era por engano que ela o admirava com aquela paixão. Ele, pelo contrário, é que por engano esteve quase a receber aquela dádiva que sem dúvida alguma era a ele que se destinava. E se não fossem os astros aquilo tudo ia a caminho de um contrato legal, destes de que gosta a sociedade. Esteve quase a prevalecer o legal, isto é, conforme a lei para todos, sobre o leal, ou seja, conforme a lei para cada um.


ALMADA-NEGREIROS, José de. Nome de Guerra, 2º ed., Lisboa, Ática, 1956, pp. 232-234.).

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

O Diário de Eva (fragmentos) — Mark Twain

Diário de Eva


DOMINGO DA SEMANA SEGUINTE

Durante toda a semana eu fiquei ao redor dele e tentei estabelecer relações. Tive que conversar sozinha, porque ele se sentiu intimidado, mas não me importei com isso. Ele parecia feliz de me ter por perto, e eu usei o sociável "nós” por um bom tempo, porque ele parecia ficar lisonjeado ao ser incluído.

QUARTA-FEIRA

Estamos nos dando muito bem, de fato, agora, e nos conhecendo cada vez melhor. Ele já não tenta me evitar, o que é um bom sinal, e demonstra que gosta de que eu esteja por perto. Isto me agrada, e eu estudo como ser útil para ele de todas as maneiras que puder, para assim aumentar a sua atenção. Durante os últimos dois dias eu tirei de seus ombros todo o trabalho de dar nome às coisas, e foi um grande alívio para ele, pois ele não tem talento para tanto e está evidentemente muito agradecido. Ele não consegue pensar num único nome racional para salvar sua reputação, mas não o deixo perceber que estou consciente deste seu defeito. Sempre que uma nova criatura aparece, eu lhe dou um nome antes que ele tenha tempo de se expor através de um silêncio constrangedor. Desta forma, evito que ele tenha muitos momentos de embaraço. Não tenho este tipo de defeito. No minuto em que deito os olhos num animal, sei o que é. Não preciso refletir nem por um momento; o nome certo surge instantaneamente, como se fosse uma inspiração, como de fato deve ser, sem dúvida, pois tenho certeza de que o nome não estava comigo nem meio minuto antes. Pareço saber, somente pela forma da criatura e pelo seu jeito de agir, que animal é.

Quando o dodô apareceu, ele pensou que se tratava de um gato selvagem — vi em seus olhos. Mas eu o salvei. E tive o cuidado de não o fazer de uma forma que pudesse ferir seu orgulho. Simplesmente falei de modo bastante natural, com alegre surpresa, e nem de longe deixei transparecer que estava lhe dando uma informação, e disse: “Ora essa!, se isto não é um dodô!”, e expliquei-lhe, sem parecer que estava explicando, como sabia que era um dodô. E, embora eu tenha reparado que talvez ele suspeitasse um pouco de que eu já conhecia aquela criatura, ficou bastante evidente que ele me admirava. Foi muito agradável, e pensei sobre isso mais de uma vez com satisfação antes de dormir. Como uma coisa tão pequena pode nos deixar felizes quando sentimos que a merecemos!

O Diário de Adão (fragmentos) — Mark Twain


FRAGMENTOS DO DIÁRIO DE ADÃO


QUARTA-FEIRA

Construí um abrigo contra a chuva, mas não pude desfrutá-lo em paz. A nova criatura intrometeu-se nele. Quando tentei expulsá-la, ela verteu água pelos orifícios pelos quais olha, e enxugou-a com as costas de suas patas, produzindo um ruído semelhante ao que vários animais fazem quando estão aflitos. Gostaria que não falasse; está sempre falando. Isso parece uma implicância gratuita com a pobre criatura, um insulto; mas não é o que quero dizer. Eu nunca havia escutado uma voz humana antes, e qualquer som novo e estranho que irrompe sobre o murmurar solene destas vastidões sonhadoras ofende meus ouvidos e soa como uma nota falsa. E este novo som está tão perto; bem ao lado do meu ombro, em cima das minhas orelhas, primeiro de um lado, depois do outro, e estou acostumado apenas a sons que estão mais ou menos longe de mim.



SEXTA-FEIRA

O processo de nomear continua intenso e sem qualquer controle, e não há nada que eu possa fazer. Eu tinha posto um ótimo nome no território, um nome musical e belo — JARDIM DO ÉDEN. Comigo mesmo, continuo a chamá-lo assim, mas já não posso fazê-lo abertamente. A nova criatura diz que ele é todo bosques e rochas e paisagens, e portanto não se parece de forma alguma com um jardim. Ela diz que se parece com um parque, e que não se parece com mais nada a não ser um parque. Portanto, sem me consultar, ele foi renomeado — PARQUE DAS CATARATAS DO NIÁGARA. Isto me parece bastante arbitrário. E já tem um cartaz: 
NÃO PISE NA GRAMA. Minha vida já não é tão feliz como antes.



SÁBADO

A nova criatura come frutas demais. Vamos ter uma escassez, ao que tudo indica. O nós de novo — a palavra daquela coisa, e minha também, agora, depois de tanto ouvi-la. Muita neblina esta manhã. Eu não saio no meio da neblina. A nova criatura sai. Ela sai com qualquer tipo de clima e pisa aqui dentro com seus pés enlameados. E fala. Aqui costumava ser tão quieto e prazeroso.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

Estou cansado de confiar em mim próprio — Fernando Pessoa

Fernando Pessoa

[Estou cansado de confiar em mim próprio, de me lamentar]

                                         25-7-1907

      Estou cansado de confiar em mim próprio, de me lamentar, de derramar lágrimas de piedade de mim próprio. Acabo de ter uma espécie de cena com a Tia Rita por causa de E. Coelho. No final, senti novamente um daqueles sintomas que se tornam cada vez mais claros e mais horríveis em mim: uma vertigem moral. Na vertigem física há um rodopiar do mundo exterior à nossa volta; na vertigem moral um rodopiar do mundo interior. Pareceu-me perder, por momentos, o sentido das verdadeiras relações das coisas, perder a compreensão, cair num abismo de dormência mental. É uma sensação pavorosa, que nos acomete de um medo desmesurado. Estas sensações estão a tornar-se comuns, parecem abrir-me o caminho para uma nova vida mental, que será, evidentemente, a loucura. 
      Na minha família não há compreensão do meu estado mental — não, nenhuma. Riem-se de mim, zombam de mim, não me acreditam; dizem que desejo ser alguém extraordinário. Nada fazem para analisar o desejo de ser extraordinário. Não podem compreender que entre ser-se e desejar-se ser extraordinário apenas há a diferença de se acrescentar consciência a esse desejo. É o mesmo que me acontecia brincando com soldadinhos de chumbo  Estou cansado de confiar em mim próprio, de me lamentar aos sete e aos catorze anos de idade; no primeiro caso eles eram coisas, no segundo, coisas e brinquedos ao mesmo tempo; todavia, o impulso para brincar com eles persistia, e esse era o estado psíquico real, fundamental. 
      Não tenho ninguém em quem confiar. A minha família não entende nada. Aos meus amigos não posso incomodar com estas coisas. Não tenho amigos verdadeiramente íntimos, e mesmo que houvesse um amigo íntimo, como o mundo o entende, ainda assim não seria íntimo no sentido em que eu entendo a intimidade. Sou tímido e não gosto de dar a conhecer as minhas angústias. Um amigo íntimo é um dos meus ideais, um dos meus sonhos, mas um amigo íntimo é algo que nunca terei. Nenhum temperamento se adapta ao meu; não há um carácter neste mundo que dê o mais leve indício de se aproximar do que eu sonho num amigo íntimo. Basta, não falemos mais nisto. 
      Amante ou namorada não tenho; é outro dos meus ideais e um ideal pleno, até à sua alma, de uma total não-existência. Não pode ser como eu o sonho. Ai de mim! Pobre Alastor! Shelley, como eu te compreendo! Poderei confiar na Mãe? Quisera tê-la comigo. Também não me posso confiar a ela, mas a sua presença mitigaria grande parte da minha dor. Sinto-me tão sozinho como um navio naufragado no mar. E sou, na verdade, um náufrago. Então confio em mim mesmo. Em mim mesmo? Que confiança existe nestas linhas? Nenhuma. Quando volto a lê-las, dói-me o espírito ao perceber quão pretensiosas, quão próprias de um diário literário elas são! Em algumas cheguei até a fazer estilo. Porém, nem por isso sofro menos. Um homem tanto pode sofrer vestido de seda como coberto com um saco ou um cobertor roto.    
      Basta.

In: Obra Essencial de Fernando Pessoa.Prosa Íntima e de Autoconhecimento. Edição Richard Zenith, Assírio & Alvim, Abril 2007

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

E se o Mundo Fosse Acabar — Marcel Proust

Marcel Proust, Jacques-Émile Blanche (Fotografo francês 1861–1942).

E se o Mundo Fosse Acabar...

   
   Uma pequena questão: se o mundo fosse acabar, o que você faria?

   Creio que a vida nos pareceria bruscamente deliciosa, se estivéssemos realmente ameaçados de morrer como você diz. Pense, de fato, em quantos projetos, viagens, amores, estudos nessa — nossa vida — ficam sem solução, invisíveis pela nossa preguiça e ficam eternamente adiados.

   Mas se tudo isso fosse para sempre impossível, quão belo não nos pareceria! Há, se realmente o cataclismo estivesse perto, desta vez não deixaríamos de visitar as novas salas do Louvre, de ajoelharmos aos pés da Srta. X... De visitar as Índias. Mas o cataclismo não acontece, não fazemos nada disso tudo, pois estamos no meio da vida normal, aonde a negligência esmorece o desejo.

   E entretanto, não deveríamos ter necessidade de cataclismos para amar a vida. Bastaria pensar que somos humanos e que esta tarde podemos encontrar a morte.


Marcel Proust, Essais et articles, 1922

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Glossário de Miados — Guillermo Cabrera Infante

Guillermo Cabrera Infante

A linguagem de Offenbach


   Offenbach se comunica conosco com algo mais do que miados. Seu repertório de sons forma uma linguagem peculiar em que o ouvido treinado busca e encontra significados.

Brrr é um ronrom de prazer e de contentamento.

Burrr é o ronrom alongado até uma forma de protesto: não se deve continuar acariciando-o, ou se deve acariciá-lo em outra parte do corpo.

Miau é a saudação matinal, uma espécie de bom-dia que Offenbach nunca deixa de dar.

Miauuu é para pedir algo: de comida até a abertura de uma janela para sentir o cheiro do jardim.

Miuu é sempre uma advertência: significa que está presente e, portanto, não se deve pisoteá-lo, ou, o que é pior, passar por cima.

Miu é uma simples saudação a qualquer hora do dia.

Miawou é a saudação a quem volta para casa. É também uma forma de queixa: ficou muito tempo sozinho.

Mia miau é uma exigência: comida atrasada ou alguém que não quer carregá-lo ou ceder-lhe um assento.

Miau simples, mas seguido ou precedido de bocejo, é soberano aborrecimento: não se deve esquecer que Offenbach é puro-sangue e todo o comportamento nele é francamente soberano: não pede, exige.

Miaorru é quando quer brincar.

Rorroua é sempre rugido: atavismo da selva ou resíduos do macho que ainda existem nele.


Guillermo Cabrera Infante, Offenbach, 1998.

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Vivamos, minha Lésbia, e amemos — Caio Valério Catulo

Vivamos, minha Lésbia, e amemos

   
   Vivamos, minha Lésbia, e amemos, não façamos caso a toda essa falação dos velhos por demais cautelosos.

   Os astros podem ocultarem-se e reaparecerem, porém nós, estamos aqui para dormir por toda a eternidade, tão logo acabe a breve chama da nossa vida. Dá-me mil beijos e depois cem, outros mil logo em seguida, e mais outros cem. Comece novamente até chegar a outros mil e ainda a mais outros cem. E depois de termos acumulado muitos milhões, vamos misturá-los até perdermos a conta ou para que nenhum invejoso venha mandingar quando saiba que demos tantos beijos.

Caio Valério Catulo ( Verona, 87 ou 84 a.C. - 57 ou 54 a.C.)
Tradução de Herman Schmitz

terça-feira, 18 de novembro de 2014

O Rato e o Eremita - Panchatantra

O RATO E O EREMITA

"O ignóbil que atinge uma posição elevada atenta contra a vida do seu amo, como o rato que, tendo chegado a ser tigre, tentou matar o eremita".

   Vivia, no bosque da penitência consagrado ao grande Gautama, um eremita chamado Maátapas.
   Um dia, encontrou esse eremita um ratinho que ia sendo carregado por um corvo. O eremita, compassivo por natureza, alimentou-o com grãos de arroz e passou a criá-lo.
   Até o dia em que surgiu um gato correndo atrás do rato para comê-lo. Ao vê-lo, correu o rato a se esconder no colo do eremita.   Disse então o eremita:
   — Rato, transforma-te tu em gato.
   Transformado em gato, porém, fugia o animal ao ver um cão.   Disse então o eremita:
   — Se tens medo do cão; transforma-te tu também em cão.
   Transformado em cão, porém, tinha o animal medo do tigre.
   Transformou então o eremita o cão em tigre.
   Para o eremita, entretanto, aquele tigre era tido como rato. Assim também era para os que viam o eremita e o tigre, que diziam:
   — Foi este eremita que transformou o rato em tigre.
   Ouvindo tais palavras, pensou um dia o tigre: 
   — Enquanto vida tiver este eremita, vida terá a infamante história da minha forma primitiva.
   Depois de assim refletir, correu o tigre para matar o eremita.     Percebendo-lhe a intenção, disse então o eremita:
   — Retorna tu a tua forma de rato.
   E assim se fez.



PANCHATANTRA (300 a.C.)
Tradução de Celina Portocarrero

sexta-feira, 31 de outubro de 2014

A Barba — Arthur Schopenhauer (A Arte de Insultar)

A barba


   A barba, por ser quase uma máscara, deveria ser proibida pela polícia. Além disso, enquanto distintivo do sexo em meio ao rosto, ela é obscena: por isso é apreciada pelas mulheres.

   Dizem que a barba é natural ao homem: não há dúvida, e por isso ela é perfeitamente adequada ao homem no estado natural; do mesmo modo, porém, no estado civilizado é natural ao homem fazer a barba, uma vez que assim ele demonstra que a brutal violência animalesca — cujo emblema, percebido imediatamente por todos, é aquela excrescência de pelos, característica do sexo masculino — teve de ceder à lei, à ordem e à civilização. A barba aumenta a parte animalesca do rosto e a ressalta. Por essa razão, confere-lhe um aspecto brutal tão evidente. Basta observar um homem barbudo de perfil enquanto ele come! Este pretende que a barba seja um ornamento. No entanto, há duzentos anos era comum ver esse ornamento apenas em judeus, cossacos, capuchinhos, prisioneiros e ladrões. A ferocidade e a atrocidade que a barba confere à fisionomia dependem do fato de que uma massa respectivamente sem vida ocupa a metade do rosto, e justamente aquela que expressa a moral. Além disso, todo tipo de pelo é animalesco.

   Olhai ao vosso redor! O sintoma externo da brutalidade cada vez mais crescente pode até mesmo ser reconhecido como o elemento que constantemente a acompanha — a barba longa, esse distintivo sexual em meio ao rosto, dizendo-nos que à humanidade prefere-se a masculinidade. Esta nos coloca em pé de igualdade com os animais, uma vez que leva o indivíduo a querer ser antes de tudo um macho, mas, e somente depois um homem. Em todas as épocas e em todos os países civilizados, o costume de barbear-se derivou da noção correta do contrário, motivo pelo qual se pretendia sobretudo ser um homem, de certo modo um homem in abstrato, sem levar em conta a diferença animalesca do sexo. Em contrapartida, o comprimento da barba sempre acompanhou pari passu a barbárie, assemelhando-se a esta inclusive no nome.

A Arte de Insultar. Arthur Schopenhauer, 2003.

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Lamentos de Ipu-ur - Poesia Egípcia (XII Dinastia)

Lamentos de Ipu-ur


Em verdade o rosto está pálido () o
que os ancestrais predisseram aconteceu.

Em verdade () o país está cheio de bandos [revoltosos],
e para lavrar um homem leva seu escudo.

Em verdade o cordato diz () é um homem de recursos.

Em verdade [o rosto] está lívido e o arqueiro está pronto,
o crime alastrou-se e não há homens como antigamente.

Em verdade os ladrões estão por toda parte,
os criados levam o que encontram.

Em verdade o Nilo inunda mas ninguém lavra para si,
pois todos dizem "Não sabemos o que sucederá ao pais".

Em verdade as mulheres estão estéreis, nenhuma concebe:
Chnum não molda [mortais] por causa da situação do pais.

Em verdade os pobres passaram a exibir luxo,
e o que não podia ter () sandálias possui riqueza

Em verdade os criados estão vorazes
e o poderoso não mais compartilha [de alegria] com sua gente

Em verdade [os corações] estão violentos, a calamidade varre o país,
há sangue por toda parte, não faltam mortos:
as faixas das múmias clamam para que se chegue a elas.

Em verdade muitos mortos são atirados no rio:
a correnteza virou sepultura e o Lugar Puro virou torrente.

Em verdade os ricos deploram e os pobres exultam;
cada cidade diz: "Expulsemos os poderosos!"

Em verdade as pessoas são como os ibis: a sujeira alastra-se
e hoje ninguém possui vestes brancas.

Em verdade o pais como que roda no torno do oleiro:
o salteador torna-se rico e o rico [torna-se] ladrão.

Em verdade os criados de confiança são como ()
Os habitantes [exclamam]: "Ai, o que será de mim?"

Em verdade o rio é sangue:
bebido, é vomitado porque [nele] há gente,
embora continue a sede de água.

Em verdade os crocodilos [estão] fartos de suas presas,
(pois) as pessoas atiram-se a eles de propósito.
O pais está ultrajado.

Todos dizem: "Não andes por aqui, é uma armadilha!"
As pessoas debatem-se [na água] como peixe,
os assustados nada distinguem em seu terror.

Em verdade () povo diminuiu,
o que enterra seu irmão está por toda parte.
A palavra do sábio logo fugiu.

Em verdade o filho do rico não é mais reconhecido,
o filho da senhora tomou-se (como) filho de sua criada.

Em verdade ()
não há egípcio em lugar algum.

Em verdade ouro, lápis-lazúli, prata e turquesa,
cornalina, ametista, ibehaty e [todas] as nossas [jóias]
pendem no pescoço das criadas.


Papiro de Ipu-ur (fragmentos) 
Escrito ao final da XII Dinastia e o Segundo Período Intermediário do Egito, entre 1850 a.C. e 1600 a.C.

sábado, 25 de outubro de 2014

Ernest Hemingway — Escrevendo em Paris

Escrevendo em Paris

   
   Era um café agradável, quente, limpo e acolhedor. Pendurei minha velha capa no cabide, para secar, coloquei meu surrado e desbotado chapéu de feltro na prateleira que ficava por cima dos bancos e pedi um café au lait. O garçom trouxe-o e eu tirei do bolso do paletó o caderno de notas e um lápis e comecei a escrever.
   Estava escrevendo um conto que se passava em Michigan e, como o dia estava péssimo, frio e ventoso, coloquei em minha história um dia exatamente assim. Eu já conhecia muitos fins de outono, da minha infância, da adolescência e dos primeiros anos da idade adulta, e sabia que há lugares em que se pode escrever melhor sobre essa época do ano do que em outros. É o que se chama de transplantação, pensei, e isso podia ser tão necessário às pessoas como a outras espécies de coisas que crescem. No meu conto os rapazes estavam bebendo, e isso me deu sede: pedi um rum Saint James. Caiu-me bem, naquele dia frio, e continuei a escrever, sentindo-me aquecido, no corpo e no espírito, por aquele esplendido rum da Martinica.
   Uma moça entrou no café e sentou-se perto da janela. Era muito bonita, com um rosto fresco como moeda acabada de cunhar, se é que se possa cunhar moedas em carne tão macia, coberta de pele umedecida pela chuva. Seus cabelos eram negros como a asa de um corvo, cortados rente e em diagonal à face. Olhei para ela, senti-me perturbado e numa grande excitação. Desejei colocá-la no meu conto, ou noutra parte qualquer, mas a moça se colocara de maneira a poder acompanhar o movimento da rua e da entrada do café, e compreendi que estava à espera de alguém. Por isso, continuei a escrever.
   O conto escrevia-se por si próprio, e eu tinha dificuldade em conduzi-lo. Pedi outro rum Saint James, observando a moça todas as vezes que levantava os olhos ou quando fazia a ponta do lápis, com um apontador, deixando as raspas encaracoladas no pires que tinha sob o cálice. — Eu te vi, oh beleza, tu me pertences agora, seja quem for que estejas esperando e mesmo que nunca te veja mais em toda a minha vida  pensei. Tu me pertences, toda Paris me pertence e eu pertenço a este caderno e a este lápis. Voltei a escrever, entrei a fundo na história e me perdi nela. Agora quem a escrevia era eu; o conto não se escrevia mais a si próprio, de modo que não tornei a levantar a cabeça. Esqueci-me do tempo, do lugar em que me encontrava e nem sequer mandei vir outro rum Saint James. Cansara-me dele sem pensar nisso. Terminei o conto, afinal, sentindo-me realmente cansado. Reli o último parágrafo e, quando levantei os olhos à procura da moça, não a encontrei mais. Tomara que tenha ido com um homem decente, pensei. Mas sentia-me triste.
   Fechei o caderno, coloquei-o no bolso de dentro, pedi ao garçom uma dúzia de portugaises e meia garrafa do vinho branco seco da casa. Depois de escrever um conto sentia-me sempre vazio e simultaneamente triste e feliz, como se tivesse acabado de me entregar ao amor físico: estava seguro de que este conto que acabara de escrever era muito bom, embora não soubesse quanto o era antes de lê-lo de ponta a ponta, no dia seguinte. Comi as ostras, que possuíam forte gosto de mar e um leve travo metálico que o vinho branco gelado lavava, deixando somente o gosto de mar e a suculenta textura; à medida que ia sorvendo o líquido frio de cada concha e o fazia descer acompanhado do estimulante sabor do vinho, o sentimento do vazio me foi abandonando e me vi de novo feliz, cheio de planos.


Ernest Hemingway. Paris é uma Festa (A Moveable Feast), 1964.
Tradução de Enio Silveira

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Nem eu nem ninguém mais pode caminhar esse caminho por você - Walt Whitman


Nem eu nem ninguém mais pode caminhar esse caminho por você. Você deve caminhá-lo por si mesmo. Não está longe, está ao alcance. Talvez você esteja nele desde que nasceu e não saiba. Talvez esteja em todas as partes, sobre a água e sobre a terra.

Walt Whitman

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Alhos de Bugalhos — João Guimarães Rosa

Alhos e Bugalhos

Misturar alhos com bugalhos é tomar uma coisa por outra, fazer confusões. Há também a forma: falo-lhe em alhos, responde-me com bugalhos, consignada em vários adagiários e que significa: Pergunto-lhe uma coisa, responde outra. Há uma outra locução com o mesmo sentido: Confundir germano com gênero humano. João Guimarães Rosa apresenta uma extensão, no conto: “A simples e exata estória do burrinho do comandante”: “O Sr. pode às vezes distinguir alhos de bugalhos, e tassalhos de borralhos e vergalhos de chanfalhos, e mangalhos... Mas, e o vice-versa?"

R. Magalhães Junior. Dicionário Brasileiro de Provérbios, Locuções e Ditos Curiosos, 1974

Pandemônio — John Milton

Pandemônio

Definida hoje por nossos dicionários como conluio de indivíduos para fazer mal ou armar desordens; o Inferno; tumulto; balbúrdia e coisas semelhantes, pandemônio é uma palavra inventada pelo famoso poeta inglês John Milton em seu grande poema O Paraíso Perdido. Aliás, ele escrevia Pandemonium, com maiúscula, e no seu poema tal lugar é o Palácio dos Diabos, ou a capital do Inferno. Embora criada artificialmente, tal palavra tem raízes gregas perfeitas: pan, que significa todos, e daimon, demônios, ou seja, concentração ou assembléia de demônios.

R. Magalhães Junior. Dicionário Brasileiro de Provérbios, Locuções e Ditos Curiosos, 1974

Serendipidade — James M. Schlatter

Serendipidade

Em dezembro de 1965, eu estava trabalhando com o Dr. Mazur na síntese do tetrapeptídeo terminal-C da gastrina. Nós estávamos fazendo compostos intermediários e tentando purificá-los. Particularmente, em uma ocasião em dezembro de 1965, eu estava recristalizando o aspartilfenilalanina metil éster (aspartame) que havia sido preparado... e dado a mim pelo Dr. Mazur. Eu estava aquecendo o aspartame em um frasco com metanol quando a mistura pulou para fora do frasco. Como resultado, um pouco do pó ficou nos meus dedos. Um pouco mais tarde, ao lamber meu dedo para pegar uma folha de papel, percebi um sabor doce muito forte. Inicialmente pensei que pudesse haver um pouco de açúcar em minhas mãos do começo do dia; entretanto, eu logo percebi que isso não podia ser verdade, pois eu havia lavado minhas mãos neste meio-tempo. Assim, remontei a origem do pó em minhas mãos até o recipiente no qual havia colocado o aspartilfenilalanina metil éster cristalizado. Achei que este éster dipeptídeo não deveria ser tóxico, e assim provei um pouco dele e descobri que era a substância que eu saboreara anteriormente em meu dedo.

James M. Schlatter — Aspartame: Fisiologia e Bioquímica, 1984.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Uma noite em lztapa — Aldo Buzzi (Nota)

Uma noite em Iztapa

Me lembro de uma noite em lztapa, às margens do pacífico, na Guatemala. A lua despontava por trás do bambual como um imenso disco vermelho. Era a hora em que as escritoras embebem suas penas no tinteiro e as macacas gritadoras, deslocando-se em bandos para o alto dos galhos, rugem como leões.

Aldo Buzzi - Viagem à Terra das Moscas, 1987

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

As Coisas Pesam Mais se São Olhadas — Julio Cortázar

Julio Cortázar. Os Prêmios, 1975

O Fusca Digerido de H.S. — Poema sobre a seca em SP

O Fusca Digerido


A seca que atinge 70 cidades em São Paulo
Seca rios antes cobertos de água
E hoje mostram-se fantasmas de outras décadas
Pesados objetos afundados em antigos acidentes

Vejo que até uma ponte foi erguida logo ao lado
Também vejo como em uma pintura surreal
Essa terra seca onde pesava o seu leito de águas
Revelar-se uma terra escamada e escoriaçada

Penso nas portas do carro que abriram-se no choque
E por força da ação das águas ficaram escancaradas
E é provável terem assim salvado os seus ocupantes
E os vejo nadando de volta para a superfície

Agora é tudo um mormaço de ar quente
E a água sumiu bebida e evaporada
Deixando com isso treze milhões de sedentos
E um fusca enferrujado para lembrar os ali afogados

Herman Schmitz, Londrina 16 de outubro de 2014

domingo, 21 de setembro de 2014

O Suplício da Esperança — de Villiers de L'Isle-Adam por João Alphonsus

O senhor conhece um conto de Villiers de L'Isle-Adam, o Suplício da Esperança? Não?

Um inquisidor determinou que se suplicie uma de suas vítimas, como último recurso para tentar a salvação de sua alma. Com a esperança de poder fugir da prisão, o homem descobre que a porta do calabouço foi esquecida com a fechadura aberta, empurra-a e sai pelos intermináveis corredores; os frades passam por ele; sem vê-lo em algum cotovelo de muro em que procurava se ocultar; um deles, que vem discutindo com outro sobre alto problema teológico, pousa sobre o fugitivo o olhar distraído, e o fugitivo se imobiliza num calafrio gelado, dentro de um desvão de parede; mas ambos distraidamente se afastam repetindo, entre outras palavras pias, o nome de Cristo: o fugitivo já está vendo a porta de saída, lá fora há luz e ar; se aproxima da liberdade, quando se sente abraçado pelo próprio inquisidor, que o chama de filho e lhe diz para não fugir dali, para não fugir de Cristo…

É assim que guardei a recordação do conto, lido naquele tempo.


In: "Sardanapalo", João Alphonsus. Os Melhores Contos de João Alphonsus. Seleção de Afonso Henriques Neto. São Paulo: Global, 2001.

sábado, 20 de setembro de 2014

Grifo — Antoine Compagnon

Grifo

Ler, com um lápis na mão, como recomendava Erasmo, em De Duplici Copia, assim como todo ensinamento da Renascença, contornar algo do texto com um forte traço vermelho ou negro é traçar o modelo do recorte. O grifo assinala uma etapa na leitura, é um gesto recorrente que marca, que sobrecarrega o texto com o meu próprio traço. Introduzo-me entre as linhas munido de uma cunha, de um pé de cabra ou de um estilete que produz rachaduras na página; dilacero as fibras do papel, mancho e degrado um objeto: faço-o meu. É por isso que na biblioteca toda essa gesticulação íntima me é proibida.

In: COMPAGNON, Antoine. O Trabalho da Citação. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996.

A Próxima Aldeia — Franz Kafka

A Próxima Aldeia — Franz Kafka

Meu avô costumava dizer: "A vida é espantosamente curta. Para mim ela agora se contrai tanto na lembrança que eu por exemplo quase não compreendo como um jovem pode resolver ir a cavalo à próxima aldeia sem temer que — totalmente descontados os incidentes desditosos — até o tempo de uma vida comum que transcorre feliz não seja nem de longe suficiente para uma cavalgada como essa".

In: Um médico rural, Companhia das Letras, 1999. Tradução de Modesto Carone.

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

François Rabelais — Conselhos do gigante Gargântua a seu filho Pantagruel

Conselhos do gigante Gargântua a seu filho Pantagruel.

"Aconselho-te, meu filho, a que empregues bem a juventude e aproveites na virtude e no estudo [...] Quero que aprendas perfeitamente línguas, primeiramente o grego, depois o latim; em seguida o hebreu, para conhecimento das Sagradas Escrituras. Que não haja história que não conheças, para o que te ajudará a Cosmografia. Das artes liberais, Geometria, Aritmética e Música, já te deram noções quando eras pequeno, na idade de cinco ou seis anos. Continua a estudá-las e estuda todas as regras de Astronomia. [...] O mundo inteiro está cheio de acadêmicos, pedagogos altamente cultivados, bibliotecas muito ricas, de tal modo que me parece que nem nos tempos de Platão, de Cícero, o estudo era tão confortável como o que se vê a nossa volta. […] Eu vejo que os ladrões de rua, os carrascos, os empregados do estábulo hoje em dia são mais eruditos do que os doutores e pregadores do meu tempo..."

Pantagruel é o herói do primeiro romance de François Rabelais "Os horríveis e apavorantes feitos e proezas do mui renomado Pantagruel, rei dos dipsodos, filho do grande gigante Gargântua", publicado em 1532. Pantagruel é filho do gigante Gargântua e de sua mulher Badebec, que morre durante o parto.

Luís de Camões — Ao desconcerto do Mundo

Ao desconcerto do Mundo

Os bons vi sempre passar
No Mundo graves tormentos;
E para mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado.
Assim que, só para mim,
Anda o Mundo concertado.

Luís de Camões

Rimbaud Livre — A Eternidade

A ETERNIDADE — Arthur Rimbaud

De novo me invade.
Quem? — A Eternidade.
É o mar que se vai
Com o sol que cai.

Alma sentinela,
Ensina-me o jogo
Da noite que gela
E do dia em fogo.

Das lides humanas,
Das palmas e vaias,
Já te desenganas
E no ar te espraias.

De outra nenhuma,
Brasas de cetim,
O Dever se esfuma
Sem dizer: enfim.

Lá não há esperança
E não há futuro.
Ciência e paciência,
Suplício seguro.

De novo me invade.
Quem? — A Eternidade.
É o mar que se vai
Com o sol que cai.

Maio 1872

in CAMPOS, Augusto de. Rimbaud Livre, Ed. Perspectiva, 2002.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Aster Navas — Números (miniconto)

Números — Aster Navas


Sobre a mesa onde escrevo essas linhas têm três livros e dois cadernos. Da janela da sala se pode ver uma praça onde brincam… 17, não, 18 crianças, que são cuidadas por nove adultos.

Do ônibus que para no ponto saem 9 homens, quatro mulheres e o nosso protagonista.

Silvia, minha mulher, ri quando digo que estou escrevendo, combinando letras. O seu, querido — já me disse, com essa, 19 vezes— são os números.

Não entendo no que ela se embasa.

Tradução: Herman Schmitz
Aster Navas. Cuentos para leer em el ascensor. 2011

terça-feira, 12 de agosto de 2014

19 Princípios Para Crítica Literária — Roberto Schwarz

19 Princípios Para Crítica Literária


1. Acusar os críticos de mais de 40 anos de impressionismo, os de esquerda de sociologismo, os minuciosos de formalismo, e reclamar para si uma posição de equilíbrio.

2. Citar em alemão os livros lidos em francês, em francês os espanhóis, e nos dois casos fora de contexto.

3. Começar sempre por uma declaração de método e pela desqualificação das demais posições. Em seguida praticar o método habitual (o infuso).

4. Nunca apresentar a vida do autor sem antes atacar o método biográfico. Vários acertos podem ser compensados por uma redação horrível.

5. Não esqueça: o marxismo é um reducionismo, e está superado pelo estruturalismo, pela fenomenologia, pela estilística, pela nova crítica americana, pelo formalismo russo, pela crítica estética, pela linguística e pela filosofia das formas simbólicas.

6. Citar muito e nunca a propósito. Uma bibliografia extensa é capital. Apoie a sua tese na autoridade dos especialistas, de preferência incompatíveis entre si.

7. A argumentação deve ser técnica, sem relação com as conclusões.

8. Não esqueça: o marxismo é um reducionismo, e está superado pelo estruturalismo, pela fenomenologia, pela estilística, pela nova crítica americana, pelo formalismo russo, pela crítica estética, pela linguística e pela filosofia das formas simbólicas.

9. Resolva sempre sem entrar no mérito da questão.

10. Para as questões de ontologia, Wellek; para as de forma Kayser,e ultimamente Todorov.

11. A psicanálise está menos superada que o marxismo, mas também é muito unilateral.

12. Não esqueça: o marxismo é um reducionismo, e está superado pelo estruturalismo, pela fenomenologia, pela estilística, pela nova crítica americana, pelo formalismo russo, pela crítica estética, pela linguística e pela filosofia das formas simbólicas.

13. Afrânio Coutinho e os Concretistas introduziram a crítica científica no Brasil.

14. Publique longos resumos de livros sem importância, convença o editor a traduzi-los e o leitor a lê-los. Há quase 700.000 universitários no país.

15. Um doutoramento vale ouro.

16. O semantema glúteo em linguística moderna tende à polissemia.

17. A crítica de nosso tempo é engajada e autêntica, e não descura de sua vocação profunda, de seu compromisso com o homem no que ele tem de eterno e no que tem de circunstancial, compromisso que irá cumprir resolutamente até o fim. Isto é que é importante.

18. Os livros editados pela Universidade de Indiana e importados pela livraria Pioneira são importantíssimos. Se pelo contrário você é de formação francesa, não deixe de aplicar o método de Chomsky e Propp. O resultado não se fará esperar.

19. Muito Cuidado com o óbvio. O mais seguro é documentá-lo sempre estatisticamente! Use um gráfico se houver espaço.



SCHWARZ, Roberto. O Pai de família e outros Estudos. Ed. Paz e Terra, 1970.

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Franz Kafka — Poseidon

Poseidon sentou-se em seu escritório, revisando as contas. A administração de todas as águas dava-lhe um trabalho insano. Ele poderia ter quantos assistentes desejasse, e de fato tinha um grande número deles, mas, como levava seu trabalho muito a sério, teimava repassar os olhos por todas as contas, e assim seus assistentes de pouco lhe valiam. Não se pode dizer que se divertisse com a função; ele a levava adiante simplesmente porque era o que lhe haviam atribuído; em verdade, com frequência, havia requisitado o que chamava de um trabalho mais alegre, mas sempre que várias sugestões lhe foram mostradas o resultado era que nenhuma delas lhe era adequada como o era sua presente ocupação. Desnecessário dizer, era muito difícil arrumar para ele uma outra profissão. Afinal, ele não poderia ser o responsável por um oceano em particular. Independentemente do fato de que num caso como este o volume de trabalho envolvido não seria menor, apenas mais aprazível, o grande Poseidon só poderia ocupar uma posição superior. E quando lhe foi oferecido um posto não relacionado com as águas, esta mera possibilidade fez com que ele se sentisse doente, sua divina respiração tornou-se escassa e seu peito de aço começou a arfar. Para falar a verdade, ninguém levou sua reação a sério; quando um homem poderoso se queixa espera-se que ele grite, por mais desesperante que seja o caso. Ninguém jamais, de fato, considerou a possibilidade de retirar Poseidon de sua posição; ele estava destinado a ser o Deus dos Mares desde os tempos imemoriais, e assim era que deveria prosseguir.

O que mais o entediava — e esta era a causa principal de seu desconforto com seu trabalho — era saber dos boatos que circulavam a seu respeito; por exemplo, que ele estava constantemente cruzando as ondas com seu tridente. E no entanto lá estava ele sentado nas profundezas do oceano do mundo revisando contas sem fim; uma viagem ocasional a Júpiter era a única interrupção desta monotonia, uma viagem no entanto da qual retornava invariavelmente furioso. Consequentemente, ele pouco viu dos oceanos, salvo a esquadra que o acompanhava à ascensão ao Olimpo, e na verdade nunca chegou a embarcar nela. Costumava dizer que estava adiando isso tudo até o fim do mundo, pois então deveria surgir um momento tranquilo quando, pouco antes do fim e tendo repassado a última conta, ele poderia ainda fazer uma rápida expedição pelos mares.

Fonte: Flávio Moreira da Costa, Viver de Rir. Ed. Record, 1995.

Milorad Pavić — Interpretação Total

Aprendi de cor a vida de minha mãe e, todas as manhãs, durante uma hora, interpreto-a diante dos espelhos, como no teatro. Isso continua dia após dia, há anos. Uso seus vestidos e seu leque e penteio-me como ela, trançando meus cabelos em forma de touca de lã. Imito-a também na presença dos outros e até no leito do meu bem amado. Nos momentos de paixão, não existo mais, sou ela apenas. Imito-a tão bem, então, que minha paixão desaparece, deixando lugar à dela. Desse modo, ela antecipadamente me roubou todas as carícias do amor. Mas não a censuro por isso, porque sei que também ela foi pilhada da mesma forma por sua mãe. Se alguém me perguntasse agora de que serve tal fogo, responderia: tento colocar-me no mundo de novo, tornando-me, porém, melhor…

Dicionário Kazar - Romance Enciclopédia em 100.000 palavras - edição feminina, PAVIC, Milorad; tradução Herbert Daniel, ed. Marco Zero, São Paulo, 1989.

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Maomé - A Mesa e a Pena de Luz para Escrever

Tal como criou seu trono, Deus criou uma mesa para escrever tão vasta que um homem poderia caminhar nela mil anos. E era a mesa feita de pérolas branquíssimas e as suas extremidades de rubis e o seu centro de esmeralda. Tudo o que nela escrevia era da mais pura claridade. Deus olhava para a mesa centos de vezes por dia e, cada vez que a olhava, construía e destruía, criava e matava… Tal como criou a mesa, Deus criou uma pena de luz para escrever, tão larga e longa que um homem a poderia percorrer, em largura ou comprimento, quinhentos anos. E, esta criada, Deus ordenou-lhe que escrevesse. Disse a pena «Que escrevo?» A ela respondeu, «Escreverás a minha sabedoria e todas as minhas criaturas, desde o princípio do mundo até ao seu fim».

O Livro da Escada de Maomé, cap. XX

Moacyr Scliar — Zap

Não faz muito que temos esta nova TV com controle remoto, mas devo dizer que se trata agora de um instrumento sem o qual eu não saberia viver. Passo os dias sentado na velha poltrona, mudando de um canal para outro - uma tarefa que antes exigia certa movimentação, mas que agora ficou muito fácil. Estou num canal, não gosto - zap, mudo para outro. Não gosto de novo - zap, mudo de novo. Eu gostaria de ganhar em dólar num mês o número de vezes que você troca de canal em uma hora, diz minha mãe. Trata-se de uma pretensão fantasiosa, mas pelo menos indica disposição para o humor, admirável nessa mulher.

Sofre, minha mãe. Sempre sofreu: infância carente, pai cruel etc. Mas o seu sofrimento aumentou muito quando meu pai a deixou. Já faz tempo; foi logo depois que nasci, e estou agora com treze anos. Uma idade em que se vê muita televisão, e em que se muda de canal constantemente, ainda que minha mãe ache isso um absurdo. Da tela, uma moça sorridente pergunta se o caro telespectador já conhece certo novo sabão em pó. Não conheço nem quero conhecer, de modo que - zap - mudo de canal. "Não me abandone, Mariana, não me abandone!" Abandono, sim. Não tenho o menor remorso, em se tratando de novelas: zap, e agora é um desenho, que eu já vi duzentas vezes, e - zap - um homem falando. Um homem, abraçado à guitarra elétrica, fala a uma entrevistadora. É um roqueiro. Aliás, é o que está dizendo, que é um roqueiro, que sempre foi e sempre será um roqueiro. Tal veemência se justifica, porque ele não parece um roqueiro. É meio velho, tem cabelos grisalhos, rugas, falta-lhe um dente. É o meu pai.

É sobre mim que fala. Você tem um filho, não tem?, pergunta a apresentadora, e ele, meio constrangido - situação pouco admissível para um roqueiro de verdade -, diz que sim, que tem um filho, só que não o vê há muito tempo. Hesita um pouco e acrescenta: você sabe, eu tinha de fazer uma opção, era a família ou o rock. A entrevistadora, porém, insiste (é chata, ela): mas o seu filho gosta de rock? Que você saiba, seu filho gosta de rock? Ele se mexe na cadeira; o microfone, preso à desbotada camisa, roça-lhe o peito, produzindo um desagradável e bem audível rascar. Sua angústia é compreensível; aí está, num programa local e de baixíssima audiência - e ainda tem de passar pelo vexame de uma pergunta que o embaraça e à qual não sabe responder. E então ele me olha. Vocês dirão que não, que é para a câmera que ele olha; aparentemente é isso, aparentemente ele está olhando para a câmera, como lhe disseram para fazer; mas na realidade é a mim que ele olha, sabe que em algum lugar, diante de uma tevê, estou a fitar seu rosto atormentado, as lágrimas me correndo pelo rosto; e no meu olhar ele procura a resposta à pergunta da apresentadora: você gosta de rock? Você gosta de mim? Você me perdoa? - mas aí comete um erro, um engano mortal: insensivelmente, automaticamente, seus dedos começam a dedilhar as cordas da guitarra, é o vício do velho roqueiro, do qual ele não pode se livrar nunca, nunca. Seu rosto se ilumina - refletores que se acendem? - e ele vai dizer que sim, que seu filho ama o rock tanto quanto ele, mas nesse momento -zap - aciono o controle remoto e ele some. Em seu lugar, uma bela e sorridente jovem que está - à exceção do pequeno relógio que usa no pulso - nua, completamente nua.

Fonte: MORICONI, Italo. Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século, Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Milorad Pavić — Sofia

Quando moço, apaixonei-me por uma jovem. Ela não me notava, mas fui perseverante e, certa noite, pude falar com Sofia (era seu nome) de meu amor com um tal ardor que ela me beijou, e senti-lhe as lágrimas em minha face. Pelo sabor das lágrimas, logo compreendi que era cega, mas isto em nada me perturbou. Permanecemos lá, enlaçados, quando ouvimos chegar do bosque próximo um galope de cavalo.
— É um cavalo branco cujo galope atravessa nossos beijos?  perguntou ela.
 Não sabemos  respondi  e saberemos somente quando ele sair do bosque.
 Nada compreendeste  disse Sofia, e no mesmo instante um cavalo branco saiu do bosque.
 Sim, sim, compreendi tudo  repliquei, e perguntei-lhe de que cor eram meus olhos.
 Verdes - disse ela.
 Ora, observai, tenho os olhos azuis...

Dicionário Kazar - Romance Enciclopédia em 100.000 palavras - edição feminina, PAVIC, Milorad; tradução Herbert Daniel, ed. Marco Zero, São Paulo, 1989.

Milorad Pavić — O Espelho Rápido e o Espelho Lento

ATEH (século IX) - Princesa kazar, cuja participação no debate que precedeu a conversão dos kazares foi decisiva. Seu nome significa entre os kazares "os quatro estados do espírito".

De noite, usava em uma das pálpebras uma letra, como aquelas que se inscrevem nas pálpebras dos cavalos antes da corrida. Essas letras pertenciam ao alfabeto kazar proibido, cujas letras matam logo depois de lidas. As letras eram traçadas por cegos e, pela manhã, antes da toalete, as criadas atendiam a princesa com os olhos fechados. Assim, ela ficava protegida de seus inimigos durante o sono. Para os kazares, o sono era o momento em que o homem é mais vulnerável.

Para distraí-la, seus criados trouxeram-lhe, certo dia, dois espelhos. Não eram muito diferentes dos outros espelhos kazares. Ambos eram feitos de sal polido, no entanto um era rápido e o outro lento. O que o espelho rápido tirava do futuro ao refletir o mundo, o espelho lento devolvia, pagando a dívida do primeiro, pois este atrasava em relação ao presente tanto quanto avançava o outro. Quando trouxeram os espelhos para a princesa Ateh, ela ainda estava no leito, e as letras inscritas nas suas pálpebras ainda não tinham sido apagadas. Ela viu-se nos espelhos com os olhos fechados e morreu imediatamente. Sucumbiu entre duas batidas de pálpebra, mais exatamente no momento em que leu pela primeira vez as letras mortais inscritas em suas pálpebras. Ela, piscara no momento precedente e no momento seguinte, e os espelhos refletiram isso. Morreu, fulminada ao mesmo tempo pelas letras do passado e pelas do futuro.



Dicionário Kazar - Romance Enciclopédia em 100.000 palavras - edição feminina, PAVIC, Milorad; tradução Herbert Daniel, ed. Marco Zero, São Paulo, 1989.

quinta-feira, 24 de julho de 2014

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Heinz von Foerster — A informação é o mais vicioso dos camaleões conceptuais.

Epígrafe encontrada no terceiro capítulo "A organização regenerada e generativa", no livro de Edgar Morin: O MÉTODO — 1. A NATUREZA DA NATUREZA, 2ª Edição, Publicações Europa América, 1977.


quarta-feira, 18 de junho de 2014

sexta-feira, 6 de junho de 2014

John Cage — Aqui estamos agora.

É simplesmente irritante pensar que se poderia estar em outro lugar. Aqui estamos agora.

Da série EPÍGRAFES (Citação de um autor, no frontispício de um livro, na abertura de um capítulo, para resumir-lhe o objeto ou o espírito.), neste caso foi encontrado no livro de Christopher Lasch, A Cultura do Narcisismo - A Vida Americana numa Era de Esperanças em Declínio. Capítulo I, O Movimento pela Conscientização e a Invasão Social do Eu.
Rio de Janeiro: Imago, 1983. 

sexta-feira, 30 de maio de 2014

segunda-feira, 19 de maio de 2014

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Rubem Fonseca — do meio do mundo prostituto...

Rubem Fonseca - E do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.