terça-feira, 22 de dezembro de 2015

Curriculum — Mario Benedetti (Poema)

A toada é bem simples
você nasce
contempla atribulado
o azul avermelhado do céu
o pássaro que emigra
o besouro tonto
que o teu sapato amassará
valente

você sofre
reclama por comida
e por costume
e por obrigação
chora limpo de culpas
extenuado
até que o sonho te desqualifique

você ama
se transfigura e ama
por uma eternidade tão provisória
que até o orgulho se torna terno
e o coração profético
se converte em escombros

você aprende
e usa o aprendizado
para tornar-se lentamente sábio
para saber que o mundo no fim é isso
em seu melhor momento uma nostalgia
em seu pior momento um desamparo
e sempre sempre um rolo,
então
você morre.


***

Traduzido por Herman Schmitz
Da Antologia Poetica, 1986.

terça-feira, 8 de dezembro de 2015

As Flores das Trevas — Villiers de l' isle-Adam (Conto breve)



As Flores das Trevas

Ao Senhor Léon Dierx

Pessoas de bem, vocês que passam:
Rezem pelos mortos!
Inscrição à margem de uma estrada




Oh, os belos entardeceres! Em frente os brilhantes cafés dos bulevares, nas varandas das confeitarias da moda, que mulheres elegantes em seus trajes coloridos, dando um tom alegre para as ruas.

E eis aqui as pequenas vendedoras de flores, circulando com suas frágeis cestinhas.

As belas desocupadas aceitam essas flores perecíveis, assustadas, misteriosas...

— Misteriosas?

— Sim, com certeza!

Existe, saibam, sorridentes leitoras –, existe aqui mesmo em Paris uma certa agência que tem acordos com vários agentes funerários de luxo, e inclusive com coveiros, para despojar aos defuntos recentes, não deixando que se murchem inutilmente nas sepulturas todos esses magníficos ramos de flores, essas coroas, essas rosas que, às centenas, o amor filial ou conjugal deposita diariamente nas sepulturas.

Estas flores quase sempre permanecem esquecidas depois das cerimônias fúnebres. Não se pensa mais nelas; tem-se pressa de voltar. Se compreende!

É então que os nossos amáveis enterradores se mostram mais alegres. Não esquecem as flores destes senhores! Não estão nas nuvens; são gente prática. Recolhem-nas às braçadas, em silêncio. Jogam apressadamente por cima do muro, sobre uma carroça já preparada, para eles é coisa de um instante.

Dois ou três dos mais inteligentes e esclarecidos transportam a carga preciosa para alguns floristas amigos, os quais com suas mãos de fada, distribuem esses melancólicos despojos de mil modos distintos: em feixes enlaçados, em vasinhos sortidos e inclusive em rosas isoladas.

Logo chegam as pequenas floristas noturnas, cada uma com sua cestinha. Pronto circulam incessantemente, com as primeiras luzes das ruas, pelos bulevares, pelos terraços brilhantes, pelos mil e um lugares de prazer.

E jovens ociosos e desejosos de serem agradáveis às elegantes, para as quais sentem algum desejo, compram essas flores a preços altos e as oferecem às suas damas.

Estas, com os rostos maquiados, as aceitam com um sorriso indiferente e as conservam na mão, ou as colocam no corpete.

E os reflexos do gás empalidece os rostos.

De forma que estas criaturas-espectros, adornadas assim com as Flores da Morte, levam, sem saberem, o emblema do amor que elas deram e do amor que elas recebem.


* * *

Tradução de Herman Schmitz
Título original: Contes cruels
Philippe-Auguste Villiers de L' Isle-Adam, 1883.

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

O Pastor Triste — William Butler Yeats (Poema)

O Pastor Triste
William Butler Yeats

Houve um homem a quem a Pena fez seu amigo
e ele, sonhando com a sua importante amiga
foi com passos lentos pelas areias
fugidias e rumorosas, onde acodem
as onda encrespadas sob o vento:
e clamou às estrelas, que desçam
de seus pálidos tronos a alivia-lo
porém elas riram e cantaram.
E então o homem de quem a Pena se fez amigo
gritou: Mar lúgubre, ouve a minha lastimável história!
O mar seguiu seu curso e deu seu antigo grito silencioso,
rodando entre colinas sonolento.
Ele deixou de perseguir a glória deste,
e detendo-se em um ameno vale remoto
gritou a sua história para as rutilantes folhas de orvalho.
Mas nada ouviram, pois ela ouvem somente
o som de seu próprio gotejar.
E logo o homem a quem a Pena se fez amigo
buscou outra vez a praia, e falou para uma concha,
e pensou, cantarei minha penada história
até que, fazendo eco, minhas palavras
enviem sua tristeza através de um coração oco e perolado
e cante para mim a minha própria história
e alivie as minhas palavra sussurradas
e, aí, meu antigo pesar desapareça.
Cantou então parado à margem perolada;
mas o triste habitante do oceano
retornou quando ele cantou em seu gemido inarticulado
entre suas bordas confusas, esquecendo-o.

****
Do livro Encruzilhadas, 1889
Tradução de Herman Schmitz

segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Sobre estar doente — Virginia Woolf (fragmento)


Sobre estar doente



Considerando quão comum é a doença, quão tremenda a transformação espiritual que ela produz, quão assombrosos, quando as luzes da saúde baixam, os países ignotos que são então expostos, que ermos e desertos da alma um ligeiro ataque de gripe põe à vista, que precipícios e gramados salpicados de flores brilhantes uma pequena elevação da temperatura revela, que antigos e empedernidos carvalhos são desarraigados em nós pelo ato da enfermidade, como descemos ao poço da morte e sentimos as águas da aniquilação pouco acima de nossas cabeças e despertamos pensando nos encontrar na presença dos anjos e dos harpistas quando temos um dente extraído e chegamos à superfície na cadeira do dentista e confundimos seu “Enxágue a boca... Enxágue a boca” com a saudação de Deus curvando-se do piso do Céu para nos dar as boas-vindas – quando pensamos nisso, como somos tão frequentemente forçados a fazer, torna-se realmente estranho que a doença não tenha tomado o seu lugar ao lado do amor, da batalha e do ciúme entre os temas principais da literatura.



Virginia Woolf “On Being Ill", 1926.

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

O Menino Inerme — Bertolt Brecht (miniconto)

O Menino Inerme

Bertolt Brecht


"O senhor K., falando do péssimo hábito de deixar passar em silêncio as injustiças, contou esta pequena história. Um transeunte quis saber de um rapazinho em lágrimas a razão de suas penas.

— Eu tinha nas mãos dois marcos para pagar uma entrada de cinema — disse o menino —, quando chegou um garoto mais forte do que eu e me arrancou um deles das mãos.

E apontou um jovem, que ainda podia ser visto a uma certa distância.

— E você não pediu socorro? — perguntou o passante.

— Claro — respondeu o menino, soluçando ainda mais forte.

— E ninguém o ouviu? — indagou ainda o estranho, acariciando-o amavelmente.

— Não... — soluçou o garoto.

— Quer dizer que você não tem capacidade vocal, que o habilite a gritar com mais força? — interrogou o homem. — Nesse caso, passe já pra cá esse outro marco!

Tomando-o, meteu-o no bolso e continuou tranquilamente o seu caminho."

-

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Os Nomes — Paul Auster (fragmento)


OS NOMES





— Nesse caso – disse ele –, fico feliz em lhe fazer esse favor. Meu nome é Quinn.

— Ah – disse Stillman, pensativo, balançando a cabeça. – Quinn.

— Sim, Quinn. Q-U-I-N-N.

— Entendo. Sim, sim, entendo. Quinn. Hmmm. Sim. Muito interessante. Quinn. Uma palavra muito sonora. Rima com Caim, não é?

— É isso mesmo. Caim.

— E também com motim, se não estou enganado.

— Não está não.

— E também com tintim por tintim. Não é mesmo?

— Exatamente.

— Hmmm. Muito interessante. Vejo muitas possibilidades nessa palavra, esse Quinn, essa... quintessência... de quididade. Quina, por exemplo. E quinhão. E quase. E quinze. Hmm. Rima com rim. Para não falar em fim. Hmmm. Muito interessante. E sim. E vim. E gim. E mim. Hmmm. Rima até com djim. Hmmm. E se a gente pensar direito, com brim. Hmmm. Sim, muito interessante. Gosto imensamente do seu nome, senhor Quinn. Ele se arvora em muitas pequeninas direções ao mesmo tempo.

— Pois é, eu mesmo já notei isso muitas vezes.
***



PAUL AUSTER. Cidade de Vidro, 1985.

terça-feira, 13 de outubro de 2015

A conversa mais cretina do mundo — O Apanhador no Campo de Centeio (Trecho)


A Sally não falou muito, a não ser para se babar com os Lunts, porque estava ocupada em achar tudo bacana e em ser simpática. Aí, de repente, descobriu do outro lado do saguão um imbecil qualquer que ela conhecia. O cara estava de terno de flanela cinza-escuro e um desses coletes de xadrez. Completamente metido a besta. Crente que estava abafando. Ele estava encostado na parede, fumando pra chuchu, dando a impressão de que estava mortalmente aporrinhado. A Sally ficou repetindo: "Conheço aquele rapaz de algum lugar". Ela sempre conhecia alguém, em qualquer lugar que estivesse, ou pelo menos pensava que conhecia. Ficou repetindo tanto, que me enchi e disse: — Se conhece, porque não vai até lá e dá um beijinho nele? Aposto que ele vai gostar.

Ela ficou furiosa comigo. Finalmente, o bobalhão nos viu e veio cumprimentá-la. Valia a pena ver os dois se cumprimentando. Parecia até que não se viam há uns vinte anos. Parecia até que os dois tomavam banho juntos, na mesma banheira, quando eram crianças. Velhos faixas. Era nojento. O mais engraçado é que eles, provavelmente, só se haviam encontrado uma única vez, em alguma festa cretina. Afinal, quando deram a baboseira por terminada, a Sally resolveu me apresentar. O nome do cara era George qualquer coisa – nem me lembro – e estudava no Andover. Grande coisa. Dava gosto ver a cara do sujeito quando a Sally pediu a opinião dele sobre a peça. Tratava-se de um desses cretinos que precisam de espaço quando começam a falar. Deu um passo para trás e pisou em cheio no pé de uma dona que estava bem ali. Acho que não sobrou um dedo inteiro no pé da infeliz. Disse que a peça em si não era nenhuma obra-prima, mas os Lunts, evidentemente, eram uns anjos. Anjos, pomba! Anjos. Era o fim. Aí, ele e a Sally começaram a falar de uma porção de gente que os dois conheciam. Era a conversa mais cretina do mundo.

***
J. D. Salinger. O Apanhador no Campo de Centeio, 1951.

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Ler para Viver — Alberto Manguel

Anselm Feuerbach - Paolo e Francesca


Ler para Viver

(Gustave Flaubert —
Carta a mlle. de Chantepie, junho de 1857)




Com uma das mãos pendendo ao lado do corpo e a outra apoiando a cabeça, o jovem Aristóteles lê languidamente um pergaminho desdobrado no seu colo, sentado numa cadeira almofadada, com os pés confortavelmente cruzados. Segurando um par de óculos sobre o nariz ossudo, um Virgílio de turbante e barba vira as páginas de um volume rubricado, num retrato pintado quinze séculos depois da morte do poeta. Descansando sobre um degrau largo, a mão direita segurando de leve o rosto, são Domingos está absorto no livro que segura frouxamente entre os joelhos, distanciado do mundo. Dois amantes, Paolo e Francesca, comprimem-se sob uma árvore, lendo um verso que os levará a perdição: Paolo, tal como são Domingos, toca o rosto com a mão; Francesca segura o livro aberto, marcando com dois dedos uma página que jamais será alcançada. A caminho da escola de medicina, dois estudantes islâmicos do século XII param para consultar uma passagem num dos livros que carregam. Apontando a página da direita do livro que traz aberto no colo, o Menino Jesus explica sua leitura para os anciãos no templo, enquanto eles, espantados, não convencidos, viram inutilmente as páginas de seus respectivos tomos em busca de uma refutação.

Tão bela quanto em vida, observada por um cão de guarda, a nobre milanesa Valentina Balbiani folheia seu livro de mármore sobre a tampa de um sepulcro onde está esculpida, em baixo-relevo, a imagem de seu corpo descarnado. Longe da cidade, turbulenta, em meio a areia e rochas crestadas, são Jerônimo, tal como um velho passageiro à espera do trem, lê um manuscrito do tamanho de um tablóide; em um canto, como compartilha com seu amigo Gilbert Cousin uma anedota do livro que está lendo e que repousa aberto sobre o atril à sua frente. Ajoelhado entre flores de oleandro, um poeta indiano do século XVII cofia a barba e, segurando na mão esquerda o livro ricamente encadernado, reflete sobre os versos que acaba de ler em voz alta para captar-lhes plenamente o sabor. Junto a uma longa fileira de prateleiras grosseiramente talhadas, um monge coreano puxa uma das 80 mil tabuinhas de madeira de Tripitaka coreana, obra com sete séculos de idade, e segura-a diante de si, lendo com atenção silenciosa. "Estude para ser sereno", é o conselho dado pelo vitralista anônimo que retratou o pescador e ensaísta Izaak Walton lendo um pequeno livro às margens do rio Itchen, perto da catedral de Winchester.

Completamente nua, uma Maria Madalena bem penteada e ao que parece, não arrependida, lê um grande volume ilustrado, estendida num pano jogado sobre uma rocha no deserto. Usando seus talentos de ator, Charles Dickens segura um exemplar de um de seus romances, do qual irá ler um trecho para um público que o adora. Encostado num parapeito de pedra às margens do Sena, um jovem mergulha em um livro (qual será?) mantido aberto em sua mão. Com impaciência, ou apenas entediada, uma mãe segura um livro diante de seu filho ruivo, enquanto ele tenta seguir as palavras com a mão direita sobre a página. Cego, Jorge Luis Borges aperta os olhos para melhor escutar as palavras de um leitor que não se vê. Numa floresta de manchas de cor, sentado sobre um tronco coberto de musgo, um menino segura com ambas as mãos um pequeno livro que lê em docequietude, senhor do tempo e do espaço.

Todos esses são leitores, e seus gestos, sua arte, o prazer, a responsabilidade e o poder que derivam da leitura, tudo tem muito em comum comigo.

Não estou sozinho.



***


Alberto Manguel. Uma história da Leitura, 1996.

terça-feira, 22 de setembro de 2015

Aberturas Célebres de Novelas — George Eliot - Adam Bede


Aberturas Célebres


Com simples gota de tinta, os adivinhos procuram revelar o futuro e os acontecimentos passados. É isso que pretendo fazer contigo, caro leitor. com uma gota de tinta e o bico da minha pena vou conduzir-te à oficina de Jonathan Burge, carpinteiro e mestre de obras na aldeia de Hayslope, tal como era no dia 18 de Junho do ano da graça de 1799.



George Eliot. O Noivado de Adam Bede, 1869.


***

quarta-feira, 16 de setembro de 2015

Italo Calvino — O Anel (Miniconto)

O ANEL


Italo Calvino


O imperador Carlos Magno, já em avançada idade, apaixonou-se por uma donzela alemã. Os barões da corte andavam muito preocupados vendo que o soberano, entregue a uma paixão amorosa que o fazia esquecer sua dignidade real, negligenciava os deveres do Império. Quando a jovem morreu subitamente, os dignitários respiraram aliviados, mas por pouco tempo, pois o amor de Carlos Magno não morreu com ela. O imperador mandou embalsamar o cadáver e transportá-lo para a sua câmara, recusando separar-se dele. O arcebispo Turpino, apavorado com essa paixão macabra, suspeitou que havia ali um sortilégio e quis examinar o cadáver. Oculto sob a língua da morta, encontrou um anel com uma pedra preciosa. A partir do momento em que o anel passou às mãos de Turpino, Carlos Magno apressou-se em mandar sepultar o cadáver e transferiu seu amor para a pessoa do arcebispo. Turpino, para fugir àquela embaraçosa situação, atirou o anel no lago Constança. Carlos Magno apaixonou-se então pelo lago e nunca mais quis se afastar de suas margens.


Italo Calvino - Seis propostas para o próximo milênio. (Sei proposte per il prossimo millennio), 1990.

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

O Piano Coquetel — Boris Vian (fragmento)


O PIANO COQUETEL


- Quer um aperitivo? - perguntou Colin. - Meu pianoquetel está pronto, você pode experimentar.

- Funciona? - perguntou Chick.

- Perfeitamente. Foi difícil acertar o ponto, mas o resultado está além do que eu esperava. Consegui, a partir de "Black and Tan Fantasy", uma mistura realmente assombrosa.

- Qual é o princípio? - perguntou Chick.

- A cada nota - disse Colin - faço corresponder uma bebida, um licor ou um aromatizante. O pedal forte corresponde a um ovo batido, e o pedal doce, ao gelo. Para a soda, basta um toque no registro agudo. As quantidades são calculadas na razão direta da duração: à semifusa equivale um dezesseis avos de dose, à semínima uma unidade, à semibreve o quádruplo da dose. Quando tocamos uma peça lenta, aciona-se um sistema de registro de modo que a quantidade não seja aumentada, o que daria um coquetel grande demais, mas o teor de álcool, sim. E, de acordo com a duração da peça, podemos, se quisermos, fazer variar o valor da dose, reduzindo-a, por exemplo, a um centésimo, para obter uma bebida que leve em conta todas as harmonias, por meio de uma regulagem lateral.

- É complicado - disse Chick.

- O conjunto é comandado por contatos elétricos e relés. Não vou te dar detalhes, você sabe do que eu estou falando. E, além do mais, o piano funciona de verdade.

- É maravilhoso! - disse Chick.

- Só tem uma coisa chata - disse Colin -, é o pedal forte para o ovo batido. Precisei pôr um sistema de engate especial, porque, ao tocar um música mais hot, vêm uns pedaços de omelete no coquetel, é difícil de engolir. Vou mudar isso aí. Por enquanto, é só prestar atenção. Para creme de leite, sol grave.

- Vou fazer um "Loveless Love" - disse Chick. - Vai ser demais.

- Ainda está no meio do muquifo que virou minha oficina - disse Colin -, porque as placas de proteção ainda não estão parafusadas. Vem, vamos lá. Vou ajustar para dois coquetéis de uns duzentos mililitros, só para começar.

Chick foi para o piano. Ao fim da peça, uma parte do painel da frente se abriu num golpe seco e apareceu uma fileira de vidros. Dois deles estavam cheios até a boca de uma mistura apetitosa.

- Fiquei com medo - disse Colin. - Teve uma hora em que você tocou uma nota errada. Felizmente, estava na harmonia.

- Isso aí considera a harmonia? - disse Chick.

- Não completamente - disse Colin. - Seria complicado demais. Só tem alguns recursos. Bebe e vem pra mesa.


Boris Vian, A Espuma dos Dias, 1947.

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

O Cético — H.L. Mencken


O HOMEM CÉTICO

Nenhum homem acredita piamente em nenhum outro homem. Pode-se acreditar piamente numa ideia, mas não em um homem. No mais alto grau de confiança que ele pode despertar, haverá sempre o aroma da dúvida — uma sensação meio instintiva e meio lógica de que, no fim das contas, o vigarista deve ter um ás escondido na manga. Esta dúvida, como parece óbvio, é sempre mais do que justificada, porque ainda não nasceu o homem merecedor de confiança ilimitada — sua traição, no máximo, espera apenas por uma tentação suficiente. O problema do mundo não é o de que os homens sejam muito suspeitos neste sentido, mas o de que tendem a ser confiantes demais — e de que ainda confiam demais em outros homens, mesmo depois de amargas experiências. Acredito que as mulheres sejam sabiamente menos sentimentais, tanto nisto como em outras coisas. Nenhuma mulher casada põe a mão no fogo por seu marido, nem age como se confiasse nele. Sua principal certeza assemelha-se à de um batedor de carteiras: a de que o guarda que o flagrou poderá ser subornado.


De O Livro dos Insultos — 1919.

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

Capivaras — Manoel de Barros

Capivaras
por Manoel de Barros

Tudo o que se há de dizer aqui sobre capivaras, nem as mentiras podem ser comprovadas. Se esfregam nas árvores de tarde antes do amor. Se amam sem ocupar beijos. Excitadas se femeiam por baixo dos balseiros. E ali se aleluiam. O cisco da raízes aquáticas e a bosta dos passarinhos se acumulam no lombo das capivaras. Dali se desprende ao meio dia forte calor de ordumes larvais . No lombo se criam mosquitos monarcas, daqueles de exposição, que furam até vidros e abaixam pratos de balança.

É vezo de dizer-se então que capivara é um bicho insetoso. Porquanto favorecem a estima dos pássaros, sobretudo dos bentevis que lhes almoçam larvas ao lombo. Coisa que todo mundo gosta, tirante as capivaras, é de flor. Pelo que já não entendo, existem razões particulares ou individuais que expliquem tal desgosto das capivaras por flor? Todas guardam água no olho.

in Manoel de Barros, O Livro das Ingnorãças, 1993.

terça-feira, 4 de agosto de 2015

O Destino Selado, poema de Herman Schmitz


O Destino Selado
de Herman Schmitz

E por detrás da fechadura do tempo
Eu me vi

Foi numa noite escura e tenebrosa
em meio à solidão de uma mesa de escrever
com dezenas de pequenas anotações
repassando à minha frente
a luz mortiça de um abajur.

Quando — de súbito
Surge uma sombra negra
que se desloca em minha direção
me envolvendo

E essa sombra
agarra esse papeizinhos
e eles são agora
como que poeira em minha mente
que se desdobram ao vento

Minha última recordação…
E que será tudo isso na tua mente!
na tua mente
na mente

 PRESENTE!  PRESENTE?  PRESENTE.


(c)2007 de Herman Schmitz

segunda-feira, 3 de agosto de 2015

O Grande Duelo, poema de Herman Schmitz

O Grande Duelo

O Grande Duelo

Por Herman Schmitz

 

Meu Deus,

Dai-me a força e a coragem

De contemplar meu corpo e minha alma

Sem desgosto.

Charles Baudelaire

 

Para ser um Homem, um homem completo

O momento preciso não basta

Há que ser relâmpago

Ter a rapidez do cirurgião

E o domínio exercitado de si mesmo

 

zumbe, entra, sai

Sobe e desce voando

criatura de si mesmo

 

repentinamente: degraus desconhecidos

despenham-se adiante

transportando pavor e incredulidade

 

— Adiante! Adiante!

 

Correr eternamente

A saltar obstáculos e obstruções

— Maratona da vida

 

Sorver de um só fôlego todo o ar e transpirar sempre

Sempre mais além,

Somente um pouco mais…

 

E nunca se chegará ao fim

Homem-Universo:

Quanto mais do fim se avança

Tanto mais é a distancia

É tudo relativo

Relativo a quem vê

 

Quando o universo se expande

Há segurança e vitalidade

Quando se contrai

Há dor e futilidade

 

Somos dois eus

Nos encostamos

Espádua contra espádua

Um roçar impertinente e impetuoso

 

— Atire! Atire!

E nos atiramos no vazio

Como que a preencher este vácuo que nos rodeia

 

Ambições, estigmas e falsidades

Cotidiano, família e propriedade

Tudo muito simples, claro e inteligível

 

— Meu grande e imenso eu

São só vinte passos;

Nos afastemos e que vença o melhor!

 

Mas ele se nega a lutar

Eu também me recuso a lutar

 

E por fim nos quedamos inertes

Ombro a ombro

 

Ele vê o dia

Enquanto eu vejo a noite

Ele vê o trabalho

Enquanto eu vejo o ócio

 

Ele Vive — Eu sonho

 

©2007 by Herman Schmitz

terça-feira, 28 de julho de 2015

Com a arte não se brinca — Julio Cortázar e Man Ray

O Presente, Man Ray.


Man Ray pensava em seu ferro de engomar cheio de pregos e outros estupendos objetos quando afirmou: De maneira nenhuma eles deviam ser confundidos com as pretensões estéticas ou o virtuosismo plástico que em geral se espera das obras de arte. Naturalmente - acrescentava a corujinha de óculos pensando na tal senhora -, os visitantes da minha exposição ficavam perplexos e não se atreviam a divertir-se, porque uma galeria de pintura é considerada um santuário onde não se brinca com a arte.

E não se atreviam a divertir-se. Man Ray, como você gostaria de ter ouvido o que eu ouvi alguns meses atrás em Genebra, onde uma galeria da cidade velha prestava uma homenagem ao Dadá. Lá estava justamente o seu ferro cheio de pregos, e enquanto a senhora lá de cima o contemplava com gélido respeito, uma garota ruiva mantinha esse diálogo exemplar com outra quase loura:

— No fundo, não é tão diferente do meu ferro.

— Como assim?

— É, com esse você se espeta e com o meu você se queima.


***

Julio Cortázar – A Volta ao Dia em 80 Mundos, 1967.

Uma Confusão Cotidiana — Franz Kafka (miniconto)

"Franz Kafka" por Robert Crumb.


UMA CONFUSÃO COTIDIANA 

Franz Kafka







Um incidente cotidiano: suportá-lo, uma confusão cotidiana. A precisa fechar com B, de H, um negócio importante. Vai a H para uma conversa prévia, percorre o caminho de ida e o de volta em dez minutos cada, e em casa se gaba dessa particular rapidez. No dia seguinte vai de novo a H, desta vez para o fechamento definitivo do negócio. Tendo em vista que este, segundo as previsões, exigirá várias horas, A parte de manhã bem cedo. Mas embora todas as circunstâncias — pelo menos na opinião de A — sejam exatamente as mesmas do dia anterior, dessa vez ele precisa de dez horas para fazer o caminho até H. Quando chega lá à noite, exausto, dizem-lhe que B, irritado com o não-comparecimento de A, tinha ido fazia meia hora para a aldeia de A e que na verdade deveriam ter-se encontrado no caminho. Aconselham A a esperar. Mas A, angustiado com a realização do negócio, parte imediatamente e vai às pressas para casa.

Dessa vez, sem prestar atenção especial nisso, percorre o caminho em não mais que um instante. Em casa fica sabendo que de fato B tinha chegado muito cedo — logo depois da partida de A; na realidade tinha encontrado A na porta da casa, o havia lembrado do negócio, mas A dissera que agora não tinha tempo, que precisava partir a toda.

Apesar do comportamento incompreensível de A, no entanto, B ficara ali, esperando A. Já havia perguntado várias vezes se A ainda não tinha voltado, mas ainda estava lá em cima, no quarto de A. Feliz com o fato de agora poder falar com B e de poder explicar-lhe tudo, A sobe correndo a escada. Já está quase no alto quando tropeça, distende um tendão e, praticamente desmaiado de dor, incapaz até de gritar, apenas gemendo no escuro, ele ouve B — impossível distinguir se a grande distância ou bem ao seu lado — descer a escada batendo os pés, furiosos, e desaparecer para sempre.

***

Franz Kafka — Narrativas do Espólio.

quarta-feira, 15 de julho de 2015

O Gato Velho — Poema e desenho de Patricia Highsmith

Desenho da autora.


O GATO VELHO



Nada foi feito para mim,
Não, nem mesmo a lareira,
Pois algumas vezes sinto frio e não há fogo,
E outras vezes, não me deixam ir até ali.
Sombras me entediam, e se acaso são um mistério
É bem sem graça. Meus ta-tataranetos
Brincam insensatos ao meu redor, mas eu agora já sei
Que os forros das coisas são apenas forros,
E que atrás da porta entreaberta
Há outra sala como esta aqui.
Gosto de sentar com meus olhos semicerrados,
Porque já vi de tudo
E minhas memórias são bem mais interessantes.
Estou em paz com tudo.
Até os camundongos podem vir a poucos centímetros,
Sabendo que aposentei nossa antiga guerra.
Apenas meus ta-tataranetos
Me irritam às vezes, puxando meu rabo,
Esbarrando e escorregando por cima de mim.
Dou-lhes uns bons tapas nas orelhas,
E volto para onde deixei meus pensamentos.
Estou em paz com tudo.




Patricia Highsmith

domingo, 12 de julho de 2015

Para fazer um poema dadaísta — Tristan Tzara



Para fazer um poema dadaísta

Pegue num jornal.

Pegue numa tesoura.

Escolha no jornal um artigo que tenha o tamanho que pensa dar ao seu poema.

Recorte o artigo.

Recorte seguidamente com cuidado as palavras que formam o artigo e meta-as num saco.

Agite com cuidado.

Seguidamente, retire os recortes um por um.

Copie conscienciosamente

segundo a ordem pela qual foram saindo do saco.

O poema parecer-se-á consigo.

E você tornou-se um escritor infinitamente original e duma sensibilidade encantadora, ainda que incompreendida pelo vulgo.


Tristan Tzara

segunda-feira, 6 de julho de 2015

A Morta — Guy de Maupassant (Conto fantástico)



A Morta

Guy de Maupassant



Eu a amei perdidamente! E por que amamos? É mesmo estranho ver no mundo somente um ser, ter no espírito um pensamento único, no coração um desejo, na boca um só nome: um nome que se eleva incessantemente, que sobe, como a água de uma fonte, do íntimo da alma à flor dos lábios, e que se pronuncia, que se repete, que se murmura continuamente, por toda parte, como uma prece elegíaca.

Não contarei nossa história. O amor tem só uma, a mesma de sempre. Encontrei-a na vida e amei-a. Eis tudo. E durante um ano vivi de sua carícia, no aconchego de seus braços, embalado por sua voz, iluminado por seu olhar, aprisionado, envolvido, ligado a tudo que emanava de seu ser, mas de tal maneira que não sabia quando era tarde ou aurora, que ignorava se era morto ou vivo, sobre a terra ou fora da terra...

E ela morreu!

Como? Não sei mais!

Ela saiu numa noite chuvosa e retornou encharcada; e, no outro dia, tossiu. Tossiu por uma semana, de cama.

O que aconteceu? Não sei mais.

Os médicos chegavam, receitavam, partiam... Vinham remédios e uma mulher os ministrava. Suas mãos ardiam. A sua fronte estava úmida e quente. Tinha um olhar brilhante e triste. Eu falava com ela, ela me respondia. O que dissemos um ao outro? Não sei mais! Esqueci tudo, tudo!

E ela morreu... Lembro-me ainda de seus suspiros, tão fracos, os últimos. A enfermeira murmurou apenas — “Ah!”. E eu compreendi, compreendi tudo!

Não soube de mais nada. Nada! Ouvi um padre dizer: “sua amante”. Parecia que a insultava. Pois já que ela morrera, ninguém mais tinha o direito de saber disto. Eu o mandei embora. Veio um outro, muito bom, muito meigo.

Eu chorei quando ele me falou sobre ela.

Consultaram-me a respeito de mil coisas relativas ao enterro. Não sei mais de nada. Entretanto, recordo-me tão bem do caixão, do ruído das marteladas, de quando a encerraram lá dentro!...

E ela foi enterrada! Enterrada! Ela, numa cova! Vieram poucas pessoas, alguns amigos. Fugi. Saí a caminhar muito tempo pelas ruas. Depois voltei para casa. No outro dia, viajei.

Retornei hoje a Paris.

Quando revi o meu quarto — o nosso quarto, o nosso leito, os nossos móveis, toda essa casa onde ficara, tudo o que resta de uma vida após a morte — apoderou-se de mim uma mágoa tão intensa que tive necessidade de escancarar as janelas e precipitar-me na rua. Não podia viver no meio dessas coisas, dessas paredes que a encarceraram, e que deviam conservar ainda, em suas fissuras imperceptíveis, átomos dela, da sua carne, do seu hálito. Pus o chapéu para sair. De repente, ao transpor a porta, passei pelo grande espelho do vestíbulo, que ela mandara instalar ali para se ver todos os dias, de alto a baixo, para ver se estava bem vestida, correta e elegante, das botinas ao arranjo dos cabelos.

E me detive diante desse espelho que tanta vez a tinha refletido. Tantas vezes que ainda devia guardar a sua imagem. Imóvel, trêmulo, fixei os olhos no vidro liso, profundo, vazio, que encerrara ela toda, que a possuíra tanto como eu, como o meu olhar apaixonado... Parecia que esse vidro nunca fora frio! Quanta saudade!

Saudade! Espelho doloroso e ardente, espelho vivo e horrível que me faz sofrer tantas torturas! Felizes dos homens em cujo coração, como num espelho em que reflexos deslizam e se apagam, esquece tudo o que conteve, tudo o que se passou diante dele, tudo o que se contemplou em sua aflição e no amor!

Saí torturado e, alheado de mim mesmo, sem desejar, sem o saber, pus-me a caminho do cemitério. Achei seu túmulo muito singelo, na simplicidade de uma cruz de mármore com algumas palavras:

“Amou, foi amada e morreu”.

 

Ela estava ali, ali embaixo, putrefeita. Que horror! Eu chorava, soluçava, à luz de um sol de tarde.

E assim fiquei muito tempo, muito tempo. Depois olhei em torno: uns farrapos de noite enlutavam o espaço. Então, um desejo bizarro, louco, um desejo de amante, desvairado, tomou-me avidamente. Quis passar a noite junto dela, a noite última, a chorar em seu túmulo.

Mas me veriam. Iriam me expulsar. Que fazer? Ergui-me e comecei a errar pela cidade morta dos desaparecidos.

E eu andava, andava... Como é pequena esta cidade, comparada à outra, à outra onde vivemos. Todavia, como os mortos são mais numerosos do que os vivos! Precisamos de altas construções, ruas enormes, tanto lugar para as quatro gerações que, ao mesmo tempo, enxergam a luz do sol, bebem água da fonte, o vinho das vinhas e comem o trigo dos campos.

E para todas as gerações dos mortos, para toda a escala da humanidade vinda até nós — quase nada —, um pedaço de chão... quase nada! A terra se apodera deles, o esquecimento apaga lembranças dos seus rostos. Adeus.

Ao fim do cemitério habitado vi, de repente, o cemitério em abandono, onde os defuntos, ressequidos de velhos, acabam por se confundir com o solo, onde as próprias cruzes apodrecem e onde serão amanhã enterrados os que vierem por último. Viceja de rosas silvestres, de ciprestes vigorosos e negros, um jardim triste e magnífico, nutrido de carne humana.

Estava só, inteiramente só. Apoiei-me a uma árvore verde. Escondi-me entre as suas ramagens pesadas e sombrias e esperei, agarrado ao tronco, como um náufrago sobre destroços.

***

Quando baixou a noite escura, muito escura, deixei meu refúgio e comecei a caminhar mansamente, a passos lentos e surdos, sobre essa terra cheia de mortos.

Andei a esmo muito tempo, muito tempo. Não a encontrava. De braços estendidos, olhos escancarados, tateando as catacumbas com as mãos, com os joelhos, com o peito, errava sem a encontrar. Tocava, apalpava, como um cego à procura de um caminho, apalpava lajes, cruzes, grades de ferro, coroas de vidro, coroas de flores mutiladas. Tateava nomes, com meus dedos, correndo-os sobre as letras. Que noite! Que noite!

Nem uma réstia de luar! Que noite! Tive medo, um pavor alucinante, nesses caminhos estreitos, entre as fileiras de túmulos! Túmulos! Túmulos, sempre túmulos! À minha volta, além, mais além, por toda a parte, túmulos!

Sentei-me sobre uma sepultura. Não podia mais andar, porque meus joelhos vergavam de exaustos. Ouvia o meu coração bater. Ouvia outro ruído, também. O que era? Um ruído confuso, inexplicável. Vinha esse ruído no meu cérebro alucinado, da noite impenetrável, ou da terra misteriosa, adubada de cadáveres humanos? Olhei ao redor.

Quanto tempo fiquei assim? Não sei. Estava paralisado pelo terror, desvairado de espanto, quase a desfalecer, quase a morrer.

De súbito, tive a impressão de que a laje da tumba em que eu me sentara se movia. Movia-se como se alguém a levantasse. De um salto, precipitei-me sobre o túmulo próximo e vi, sim, eu vi a pedra erguer-se lentamente e surgir um esqueleto nu, que a empurrava com os ombros. Via muito bem, via tudo, não obstante a escuridão da hora. Pude ler sobre a cruz:

“Aqui repousa Jacques Olivant, morto aos cinquenta anos. Amou os seus, foi bom e honesto e morreu na paz do Senhor”.

 

Agora o morto lia também as coisas gravadas na lápide tumular. Tomou depois uma pedra pontiaguda e pôs-se a raspar com cuidado o epitáfio. Apagou-o lentamente, cravando a órbita vazia no lugar em que estava escrito. E com a ponta do osso que fora o seu indicador, escreveu em letras luminosas, com estas linhas que as crianças riscam na parede com um pirilampo vivo:

“Aqui repousa Jacques Olivant, morto aos cinquenta anos. Abreviou com crueldade os dias de seu pai, de quem desejava herdar, maltratou a esposa, atormentou seus filhos, traiu seus vizinhos, roubou quanto pôde e morreu miserável”.

 

Terminando, o morto ficou a contemplar a sua obra. E eu vi, voltando-me, que todos os túmulos se abriam, que todos os cadáveres os deixavam, que todos apagavam as lisonjas, escritas pelos parentes na pedra funerária, para restabelecer a verdade.

E vi que todos tinham sido carrascos do próximo, odiosos, hipócritas, mentirosos, caluniadores, invejosos, e que haviam roubado, traído, praticado os atos mais vergonhosos, mais abomináveis, todos estes bons pais, estes maridos fiéis, estes filhos dedicados, estas donzelas castas, estes comerciantes probos, estes homens e estas mulheres irrepreensivelmente honestos.

Escreviam todos ao mesmo tempo, no pórtico de sua morada eterna, a cruel, a terrível, a santa verdade que os vivos sobre a terra ignoravam ou fingiam ignorar.

Lembrei-me de que ela devia também riscar a sua legenda.

Já sem medo algum, correndo por entre as covas abertas, por entre os cadáveres, precipitei-me para onde com certeza a encontraria.

E sobre a cruz de mármore, onde antes se lera: “Amou, foi amada e morreu”, vi agora:

“Saindo um dia para trair o seu amante, adoeceu sob a chuva e morreu”.

 

Parece que, ao raiar do dia, levaram-me inanimado da beira do túmulo.

***


Título Original: La Morte
Ano: 1887
Tradução de autor desconhecido em 1909 (Recuperação, atualização ortográfica e adaptação textual: Paulo Soriano.)

terça-feira, 16 de junho de 2015

Silêncio Brilhante — Spencer Holst (Conto muito curto)



SILÊNCIO BRILHANTE 
Spencer Holst


Dois ursos Kodiak nativos do Alasca entraram para um pequeno circo em que se apresentavam numa parada noturna puxando um carro coberto por uma lona. Os dois foram ensinados a dar cambalhotas, a girar, a ficar apoiados em suas cabeças, e a dançar sobre suas pernas traseiras, pata com pata, os passos em harmonia. Debaixo dos holofotes os ursos dançarinos, um macho e uma fêmea, logo se tornaram os favoritos da multidão. O circo foi para o sul numa turnê pela costa oeste através do Canadá até a Califórnia e continuou para baixo até o México, passando pelo Panamá em direção à América do Sul, cobrindo os Andes na extensão do Chile em direção àquelas ilhas mais ao sul da Terra do Fogo. Lá um jaguar atacou o ilusionista, e depois feriu mortalmente o treinador de animais, e as pessoas, chocadas, debandaram em desalento e horror. Na confusão os ursos tomaram o seu próprio caminho. Sem um dono, eles vagaram a sós pela selva naquelas ilhas subantárticas densamente arborizadas e assoladas por ventos violentos. Completamente isolados das pessoas, numa ilha remota e deserta, e numa atmosfera que lhes era ideal, os ursos se acasalaram, prosperaram e se multiplicaram, e depois de numerosas gerações povoaram toda a ilha. De fato, passados alguns anos, os descendentes dos dois seguiram para meia dúzia de ilhas adjacentes, e depois de 70 anos, quando os cientistas finalmente encontraram e com entusiasmo estudaram os ursos descobriu-se que todos eles, levando-se em conta que eram ursos, apresentavam esplêndidos truques circenses.


Às noites, quando o céu está limpo e a lua cheia eles se reúnem para dançar. Reúnem os filhotes e os jovens ursos num círculo ao seu redor. Reúnem-se e se juntam, abrigados do vento no centro de uma cratera circular e cintilante produzida por um meteorito que havia caído num leito de calcário. Suas paredes vítreas são brancas como cal, seu chão plano está coberto com cascalhos brancos, e, além disso, o local conserva-se escoado e seco. Nenhuma vegetação cresce por ali. Quando a lua surge no céu, a luz refletida nas paredes inunda a cratera como uma poça de claridade, fazendo com que o a superfície do fundo seja duas vezes mais brilhante do que qualquer outro lugar naquela vizinhança. Cientistas especulam que originalmente a lua cheia lembrava os dois ursos dos holofotes do circo, e por isso eles dançavam. Ainda assim alguém poderia perguntar que músicas os descendentes dançavam? Pata com pata, os passos em harmonia... Que música eles podem ouvir, afinal, dentro de suas cabeças enquanto dançam sob a lua cheia e a Aurora Austral, enquanto dançam imersos num silêncio brilhante?



in Flash Fiction: 72 very short stories. Nova Iorque: Norton, 1992.

sexta-feira, 29 de maio de 2015

O Assassino era o Escriba — Paulo Leminski

Leminski, foto Dulce Helfer.

O ASSASSINO ERA O ESCRIBA
Paulo Leminski


Meu professor de análise sintática era o tipo do sujeito inexistente.
Um pleonasmo, o principal predicado da sua vida,
regular como um paradigma da 1ª conjugação.
Entre uma oração subordinada e um adjunto adverbial,
ele não tinha dúvidas: sempre achava um jeito
assindético de nos torturar com um aposto.
Casou com uma regência.
Foi infeliz.
Era possessivo como um pronome.
E ela era bitransitiva.
Tentou ir para os EUA.
Não deu.
Acharam um artigo indefinido em sua bagagem.
A interjeição do bigode declinava partículas expletivas,
conectivos e agentes da passiva, o tempo todo.
Um dia, matei-o com um objeto direto na cabeça.


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Do livro Caprichos & Relaxos
Coleção Cantadas Literárias. Ed. Brasiliense.