terça-feira, 28 de março de 2017

A Porta Aberta - Conto de SAKI


A PORTA ABERTA
SAKI
(Hector Hugh Munro -1870 1916)




— Minha tia já vai descer, sr. Nuttel — disse uma jovem dama de 15 anos, muito segura de si. — Enquanto isso, o senhor terá de me aturar.

Framton Nuttel procurava dizer algo apropriado que lisonjeasse devidamente a sobrinha no momento sem indevidamente menosprezar a tia de logo mais. De si para si duvidava, mais do que nunca, que visitas de cortesia, como essa, a uma série de pessoas estranhas, beneficiassem muito o tratamento de nervos a que pretendiam submetê-lo.

— Já sei como vai ser a coisa — dissera-lhe a irmã quando ele preparava sua retirada para aquele recanto de província. — Você vai-se enterrar ali sem falar a vivalma, e vai-se aborrecer tanto que os seus nervos ficarão piores do que nunca. Pelo sim, pelo não dou-lhe umas cartas de recomendação para todas as pessoas do lugar minhas conhecidas. Algumas delas, ao que me lembro, são bem agradáveis.

Framton perguntava a si mesmo, agora, se a sra. Sappleton, a quem vinha apresentar uma daquelas cartas, pertencia ao grupo agradável.

— O senhor conhece muita gente aqui? — perguntou a sobrinha quando julgou que já tinham tido entre si bastante silêncio.

— Quase ninguém — respondeu Framton. — Minha irmã passou aqui algum tempo na reitoria, há uns quatro anos, e deu-me cartas de apresentação para várias pessoas daqui.

Estas últimas palavras foram pronunciadas em tom de manifesto pesar.

— Então o senhor não sabe praticamente nada a respeito de minha tia? — perguntou a jovem dama, segura de si.

— Nada, a não ser o nome e o endereço — reconheceu o visitante.

Nem sabia se a sra. Sappleton era casada ou viúva. Um não sei quê indeterminável parecia sugerir a existência de homens na casa.

— Pois a grande tragédia dela ocorreu há três anos — declarou a menina —, quer dizer, após a visita da irmã do senhor.

— Tragédia? — perguntou Framton.

Naquele cantinho tranquilo de província parecia não haver lugar para tragédias.

— O senhor poderia perguntar por que deixamos esta porta-janela aberta numa tarde de outubro — disse ela, indicando uma larga porta que dava sobre um relvado.

— Está muito quente para a estação — observou Framton —, mas será que essa porta tem algo que ver com o drama?

— Foi por ela que, há três anos menos um dia, o marido de minha tia e seus dois jovens irmãos saíram para a caça. Nunca voltaram. Ao atravessarem o brejo para chegar ao seu lugar favorito, onde costumavam caçar narcejas, os três foram tragados por um pântano traiçoeiro. Naquele ano o verão tinha sido muito úmido, o senhor sabe, e trechos seguros do caminho em outros anos cediam de repente sem dizer água-vai. E — o que há de mais horrível — os corpos nunca foram encontrados.

Aqui a voz da menina perdeu o tom firme e tornou-se hesitante, humana:

— A pobrezinha da titia sempre pensa que eles um dia voltarão, eles e o pequeno sabujo castanho que com eles se perdeu, e vão entrar pela porta, como habitualmente faziam. É por isso que a deixam aberta todas as tardes, até o cair do crepúsculo. Pobre titia! Mais de uma vez me contou como eles foram embora, seu marido com o impermeável branco sobre o braço, e Ronnie, seu irmão mais moço, cantando “Bertie, por que estás pulando?”, com que habitualmente a agastava, porque ele dizia que aquilo a irritava muito. Sabe? Às vezes, em noites tranquilas, silenciosas como esta, eu tenho uma espécie de calafrio: parece-me que os vejo todos entrar por aquela porta.

Interrompeu-se, com um leve tremor. Foi para Framton verdadeiro alívio quando a tia irrompeu no salão multiplicando desculpas por não haver aparecido antes.

— Espero que Vera o tenha divertido — disse.

— A conversa dela tem sido muito interessante — declarou Framton.

— Espero que a porta aberta não o esteja incomodando — disse a sra. Sappleton com vivacidade. — Meu marido e meus irmãos vão chegar da caçada, e eles sempre entram por aqui. Hoje foram caçar narcejas no paul, e vão sujar completamente os meus pobres tapetes. São coisas de homem, não é?

Continuou a tagarelar sobre a casa e a escassez de aves e as perspectivas de haver patos no inverno. Para Framton tudo aquilo era simplesmente horrível. Fez um esforço desesperado, mas só em parte bem-sucedido, a fim de encaminhar a conversa a outro assunto menos horroroso; sentia que a dona da casa só lhe consagrava parte de sua atenção, pois seus olhares iam, sem parar, em direção à porta aberta e ao relvado. Fora, na verdade, uma coincidência infeliz que o trouxera àquela casa precisamente naquele aniversário trágico.

— Os médicos são unânimes em me aconselhar repouso absoluto, abstenção de qualquer excitação mental e de qualquer exercício físico de certa violência — anunciou Framton, que sofria da ilusão, muito espalhada, de que pessoas de todo estranhas a nós, ou conhecidas por acaso, ficam ávidas de conhecer até os mínimos pormenores de nossas doenças e enfermidades, de sua causa e seu tratamento. — Eles só não estão de acordo quanto ao regime — acrescentou.

— Não? — perguntou a sra. Sappleton num tom que ainda em tempo substituiu um bocejo.

Depois, de repente, seu rosto se aclarou num ar de atenção, mas não àquilo que Framton dizia.

— Afinal chegaram! — exclamou. — Justo à hora do chá. Mas não vê que estão cheios de lama até os olhos?

Framton estremeceu de leve e voltou-se para a sobrinha com um olhar destinado a comunicar-lhe uma compreensiva solidariedade. A mocinha estava com os olhos fixos na porta, cheios de horror e estupefação. Num frio choque de medo inominável, Framton virou-se na sua poltrona e olhou para a mesma direção.

No crepúsculo cada vez mais escuro três vultos atravessavam o relvado em direitura à porta; os três sobraçavam espingardas, e um deles tinha também uma capa branca, pendente de um dos ombros. Um sabujo castanho, cansado, seguia-lhe as pegadas. Sem barulho chegaram à casa, até que uma voz moça e rouca se pôs a cantar no lusco-fusco: — “Bertie, por que estás pulando?”

Framton agarrou compulsivamente a bengala e o chapéu; a porta do vestíbulo, o passeio de cascalho e o portão da frente foram as etapas confusamente notadas de sua precipitada fuga. Um ciclista que vinha pela estrada teve de se encostar à cerca para evitar uma colisão.

— Chegamos, querida — disse o da capa branca entrando pela porta. — Estamos cheios de lama, mas quase toda seca. Mas quem foi que fugiu daqui à nossa chegada?

— Um homem esquisitíssimo, um certo sr. Nuttel — disse a sra. Sappleton. — Só sabia falar das próprias doenças, e sumiu sem uma palavra de adeus ou de desculpa quando vocês entraram. Dir-se-ia que viu um fantasma.

— Parece-me que foi o sabujo — disse calmamente a sobrinha. — Ele me contou que tinha horror a tudo quanto é cachorro. Certa vez foi perseguido, num cemitério lá nas margens do Ganges, por uma matilha de cães párias, e teve de passar a noite numa cova recém-aberta, com os bichos a rosnar, a espumar, a arreganhar os dentes para ele. O bastante para a gente ficar com os nervos abalados.

Ela estava-se especializando em improvisar histórias.


***

A bibliografia de Saki comporta alguns volumes de contos: Reginaldo; Reginaldo na Rússia; As crônicas de Clóvis; Bichos e superbichos (1914); um romance: O insuportável Bassington; uma sátira política: Alice em Westminster; e um único “livro sério”: A ascensão do império russo.

“Unindo a agudo senso do ridículo o talento da sátira mordaz e até amarga”,45 encontrou Saki na alta sociedade inglesa matéria abundante para os seus contos. Os passatempos frívolos dessa classe — o jogo, a caça, o turfe, as reuniões sociais — eram alvos preferidos do escritor, que os ridicularizava sem poder esconder de todo a ternura que aquele ambiente, o seu, apesar de tudo lhe inspirava. 

(Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai - Mar de Histórias, vol. 9).


sexta-feira, 24 de março de 2017

Lucrécio, Poeta - conto de Marcel Schwob


Marcel Schwob

LUCRÉCIO, POETA



Lucrécio veio ao mundo numa grande família que se retirara da vida social. Seus primeiros dias receberam a sombra do negro pórtico de uma casa alta erguida na montanha. O átrio era severo; os escravos, mudos. Desde cedo o adolescente se viu cercado pelo desprezo da política e dos homens. O nobre Mêmio, que tinha a mesma idade, participou, na floresta, dos jogos que Lucrécio lhe impusera. Juntos, os dois admiraram as rugas das velhas árvores, e espiaram o tremor das folhas ao sol, como um víride véu de luz juncado de manchas de ouro. Muitas vezes contemplaram as costas listradas dos porcos selvagens que fossavam o solo. Atravessaram cachos frementes de abelhas e bandos de formigas em marcha. E certo dia, ao saírem de uma mata de corte, chegaram a uma clareira rodeada de antigos sobros, assentados tão estreitamente que o círculo deles escavava no céu um poço de azul. A paz desse asilo era infinita. Dir-se-ia uma longa estrada clara que ia para o alto do divino ar. Aí foi que Lucrécio teve, num relance, a bênção dos espaços calmos.

Em companhia de Mêmio, deixou o templo sereno da floresta para estudar eloquência em Roma. O antigo fidalgo que governava o solar deu-lhe um professor grego e determinou que só voltasse quando possuísse a arte de desprezar as ações humanas. Lucrécio não tornou a vê-lo: morreu solitário, execrando o tumulto da sociedade. Ao regressar, o jovem trazia para o átrio severo e para o meio dos mudos escravos do solar vazio uma africana linda, bárbara e má. Mêmio regressara à casa dos pais. Lucrécio tinha visto as facções sanguinárias, as guerras dos partidos e a corrupção política. Estava apaixonado.

E, a princípio, a sua vida foi enfeitiçada. Contra as tapeçarias das paredes a africana apoiava as onduladas massas da sua cabeleira. Todo o seu corpo desposara longamente os repousos do leito. Com os braços carregados de esmeraldas translúcidas cingia as ânforas cheias de vinhos espumantes. Tinha um modo estranho de levantar o dedo e de sacudir a testa. Seus sorrisos provinham de uma fonte misteriosa e funda como os rios da África. Em vez de fiar a lã, lacerava-a paciente em farfalhas que lhe esvoaçavam em redor.

Lucrécio desejava ardentemente fundir-se naquele belo corpo. Apertava-lhe os seios metálicos e colava os lábios àqueles lábios de um roxo sombrio. As palavras de amor passaram de um para o outro, foram suspiradas, fizeram-nos rir, e gastaram-se. Os dois tocaram no véu flexível e opaco que separa os amantes. A sua volúpia cresceu em furor e desejou mudar de pessoa. Chegou ao extremo agudo em que se expande à volta da carne, sem penetrar nas entranhas. A africana enroscou-se-lhe dentro do coração selvagem. Lucrécio desesperou-se por não poder realizar o amor. A mulher tornou-se altiva, sombria e silenciosa, tal qual o átrio e os escravos. Lucrécio errou pela sala dos livros.

Foi então que desdobrou o rolo onde um escriba copiara o tratado de Epicuro.

Imediatamente compreendeu ele a variedade das coisas deste mundo e a inutilidade de aspirar às ideias. O Universo pareceu-lhe semelhante às farfalhas de lã que os dedos da africana espalhavam pelas salas. Os cachos de abelhas e as colunas de formigas e o tecido móbil das folhas foram para ele agrupamentos de átomos, e em todo o corpo sentiu um povo invisível e discorde, ávido de separar-se. E os olhares pareceram-lhe raios, mais sutilmente carnudos, e a imagem da linda bárbara, um mosaico agradável e colorido, e teve a sensação de que o fim do movimento dessa infinidade era triste e vão. Assim como às facções ensanguentadas de Roma, com suas tropas de clientes armados e insultadores, contemplou o torvelinho de rebanhos de átomos tintos do mesmo sangue e que disputam entre si uma obscura supremacia. E viu que a dissolução da morte era apenas a emancipação dessa turba turbulenta que se atira a mil outros movimentos inúteis.

Ora, mal recebeu Lucrécio essa instrução do rolo de papiro onde as palavras gregas se achavam entretecidas, como os átomos do mundo, saiu à floresta pelo negro pórtico da casa solarenga dos antepassados. E avistou o dorso dos porcos listrados que tinham o focinho sempre dirigido para a terra. Depois, atravessando a mata de corte, súbito se encontrou no meio do templo sereno da floresta, e seus olhos penetraram no poço azul do céu. Foi ali que fixou o seu descanso.

Dali contemplou a imensidade formigante do Universo: todas as pedras, todas as plantas, todas as árvores, todos os animais, todos os homens com as suas cores, as suas paixões, os seus instrumentos, e a história dessas coisas diversas, e seu nascimento, e suas doenças, e sua morte. E, no meio da morte total e necessária, percebeu claro a morte única da africana, e chorou.

Sabia que as lágrimas vêm de um movimento particular das glandulazinhas dispostas sob as pálpebras e agitadas por uma procissão de átomos saídos do coração, quando o próprio coração sofreu o choque duma sucessão de imagens coloridas que se desprendem da superfície do corpo da amada. Sabia que o amor não é devido senão a uma intumescência de átomos desejosos de se juntar a outros átomos. Sabia que a tristeza causada pela morte não passa da pior das ilusões terrestres, pois a morta cessara de ser infeliz e de sofrer, enquanto aquele que a chorava se afligia com os seus próprios males e sonhava tenebrosamente com a própria morte. Sabia que de nós não resta nenhum simulacro duplo para verter lágrimas sobre o próprio cadáver estendido a nossos pés. Mas, conhecendo exatamente a tristeza e o amor e a morte, e sabendo que estes são imagens vãs quando as contemplamos do espaço calmo a que nos devemos recolher, continuou a chorar, a desejar o amor e a temer a morte.

Eis por que, de regresso à casa alta e sombria dos antepassados, se aproximou da bela africana, que estava preparando uma beberagem numa panela de metal em cima de um braseiro. De fato, ela por sua vez também sonhara, e seus pensamentos remontaram à fonte misteriosa do seu sorriso. Lucrécio contemplou a beberagem ainda fervente, que aos poucos foi clareando e se tornou semelhante a um céu verde e turvo. E a bela africana sacudiu a cabeça e levantou o dedo. Então Lucrécio bebeu o filtro. E imediatamente a razão lhe fugiu, e ele esqueceu todas as palavras gregas do rolo de papiro. E pela primeira vez conheceu o amor, sendo louco; e durante a noite, tendo sido envenenado, conheceu a morte.

***

Mayer André Marcel Schwob, known as Marcel Schwob (23 August 1867 – 26 February 1905), was a Jewish French symbolist writer best known for his short stories and his literary influence on authors such as Jorge Luis Borges and Roberto Bolaño. He has been called a "surrealist precursor". In addition to over a hundred short stories, he wrote journalistic articles, essays, biographies, literary reviews and analysis, translations and plays. He was extremely well known and respected during his life and notably befriended a great numbers of intellectuals and artists of the time. Wikipedia: Marcel_Schwob.

sexta-feira, 3 de março de 2017

Franz Kafka - Sobre os livros


Franz Kafka - Sobre os livros

Deveríamos apenas ler livros que nos mordem e espicaçam. Se a obra que lemos não nos desperta com um golpe de punho sobre o crânio, qual é a vantagem de a ler? Para que nos torne felizes, como afirmas? Meu Deus, seríamos da mesma forma felizes se não tivéssemos livro. E os livros que nos deixam felizes, a rigor, poderíamos escrevê-los nós mesmos. Em contrapartida, precisamos de livros que sobre nós atuem de modo igual a uma desgraça; que nos façam sofrer muito, como a morte de quem amássemos mais do que a nós mesmos, como um suicídio. Um livro deve ser o machado que rompe o mar gelado existente em cada um de nós. 

***

Carta a Oskar Pollak, de 27 de janeiro de 1904. In: NUNES, Danillo. Franz Kafka: vida heroica de um anti-herói. Rio de Janeiro: Edições Bloch, 1974. p. 167-168.