sexta-feira, 31 de outubro de 2014

A Barba — Arthur Schopenhauer (A Arte de Insultar)

A barba


   A barba, por ser quase uma máscara, deveria ser proibida pela polícia. Além disso, enquanto distintivo do sexo em meio ao rosto, ela é obscena: por isso é apreciada pelas mulheres.

   Dizem que a barba é natural ao homem: não há dúvida, e por isso ela é perfeitamente adequada ao homem no estado natural; do mesmo modo, porém, no estado civilizado é natural ao homem fazer a barba, uma vez que assim ele demonstra que a brutal violência animalesca — cujo emblema, percebido imediatamente por todos, é aquela excrescência de pelos, característica do sexo masculino — teve de ceder à lei, à ordem e à civilização. A barba aumenta a parte animalesca do rosto e a ressalta. Por essa razão, confere-lhe um aspecto brutal tão evidente. Basta observar um homem barbudo de perfil enquanto ele come! Este pretende que a barba seja um ornamento. No entanto, há duzentos anos era comum ver esse ornamento apenas em judeus, cossacos, capuchinhos, prisioneiros e ladrões. A ferocidade e a atrocidade que a barba confere à fisionomia dependem do fato de que uma massa respectivamente sem vida ocupa a metade do rosto, e justamente aquela que expressa a moral. Além disso, todo tipo de pelo é animalesco.

   Olhai ao vosso redor! O sintoma externo da brutalidade cada vez mais crescente pode até mesmo ser reconhecido como o elemento que constantemente a acompanha — a barba longa, esse distintivo sexual em meio ao rosto, dizendo-nos que à humanidade prefere-se a masculinidade. Esta nos coloca em pé de igualdade com os animais, uma vez que leva o indivíduo a querer ser antes de tudo um macho, mas, e somente depois um homem. Em todas as épocas e em todos os países civilizados, o costume de barbear-se derivou da noção correta do contrário, motivo pelo qual se pretendia sobretudo ser um homem, de certo modo um homem in abstrato, sem levar em conta a diferença animalesca do sexo. Em contrapartida, o comprimento da barba sempre acompanhou pari passu a barbárie, assemelhando-se a esta inclusive no nome.

A Arte de Insultar. Arthur Schopenhauer, 2003.

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Lamentos de Ipu-ur - Poesia Egípcia (XII Dinastia)

Lamentos de Ipu-ur


Em verdade o rosto está pálido () o
que os ancestrais predisseram aconteceu.

Em verdade () o país está cheio de bandos [revoltosos],
e para lavrar um homem leva seu escudo.

Em verdade o cordato diz () é um homem de recursos.

Em verdade [o rosto] está lívido e o arqueiro está pronto,
o crime alastrou-se e não há homens como antigamente.

Em verdade os ladrões estão por toda parte,
os criados levam o que encontram.

Em verdade o Nilo inunda mas ninguém lavra para si,
pois todos dizem "Não sabemos o que sucederá ao pais".

Em verdade as mulheres estão estéreis, nenhuma concebe:
Chnum não molda [mortais] por causa da situação do pais.

Em verdade os pobres passaram a exibir luxo,
e o que não podia ter () sandálias possui riqueza

Em verdade os criados estão vorazes
e o poderoso não mais compartilha [de alegria] com sua gente

Em verdade [os corações] estão violentos, a calamidade varre o país,
há sangue por toda parte, não faltam mortos:
as faixas das múmias clamam para que se chegue a elas.

Em verdade muitos mortos são atirados no rio:
a correnteza virou sepultura e o Lugar Puro virou torrente.

Em verdade os ricos deploram e os pobres exultam;
cada cidade diz: "Expulsemos os poderosos!"

Em verdade as pessoas são como os ibis: a sujeira alastra-se
e hoje ninguém possui vestes brancas.

Em verdade o pais como que roda no torno do oleiro:
o salteador torna-se rico e o rico [torna-se] ladrão.

Em verdade os criados de confiança são como ()
Os habitantes [exclamam]: "Ai, o que será de mim?"

Em verdade o rio é sangue:
bebido, é vomitado porque [nele] há gente,
embora continue a sede de água.

Em verdade os crocodilos [estão] fartos de suas presas,
(pois) as pessoas atiram-se a eles de propósito.
O pais está ultrajado.

Todos dizem: "Não andes por aqui, é uma armadilha!"
As pessoas debatem-se [na água] como peixe,
os assustados nada distinguem em seu terror.

Em verdade () povo diminuiu,
o que enterra seu irmão está por toda parte.
A palavra do sábio logo fugiu.

Em verdade o filho do rico não é mais reconhecido,
o filho da senhora tomou-se (como) filho de sua criada.

Em verdade ()
não há egípcio em lugar algum.

Em verdade ouro, lápis-lazúli, prata e turquesa,
cornalina, ametista, ibehaty e [todas] as nossas [jóias]
pendem no pescoço das criadas.


Papiro de Ipu-ur (fragmentos) 
Escrito ao final da XII Dinastia e o Segundo Período Intermediário do Egito, entre 1850 a.C. e 1600 a.C.

sábado, 25 de outubro de 2014

Ernest Hemingway — Escrevendo em Paris

Escrevendo em Paris

   
   Era um café agradável, quente, limpo e acolhedor. Pendurei minha velha capa no cabide, para secar, coloquei meu surrado e desbotado chapéu de feltro na prateleira que ficava por cima dos bancos e pedi um café au lait. O garçom trouxe-o e eu tirei do bolso do paletó o caderno de notas e um lápis e comecei a escrever.
   Estava escrevendo um conto que se passava em Michigan e, como o dia estava péssimo, frio e ventoso, coloquei em minha história um dia exatamente assim. Eu já conhecia muitos fins de outono, da minha infância, da adolescência e dos primeiros anos da idade adulta, e sabia que há lugares em que se pode escrever melhor sobre essa época do ano do que em outros. É o que se chama de transplantação, pensei, e isso podia ser tão necessário às pessoas como a outras espécies de coisas que crescem. No meu conto os rapazes estavam bebendo, e isso me deu sede: pedi um rum Saint James. Caiu-me bem, naquele dia frio, e continuei a escrever, sentindo-me aquecido, no corpo e no espírito, por aquele esplendido rum da Martinica.
   Uma moça entrou no café e sentou-se perto da janela. Era muito bonita, com um rosto fresco como moeda acabada de cunhar, se é que se possa cunhar moedas em carne tão macia, coberta de pele umedecida pela chuva. Seus cabelos eram negros como a asa de um corvo, cortados rente e em diagonal à face. Olhei para ela, senti-me perturbado e numa grande excitação. Desejei colocá-la no meu conto, ou noutra parte qualquer, mas a moça se colocara de maneira a poder acompanhar o movimento da rua e da entrada do café, e compreendi que estava à espera de alguém. Por isso, continuei a escrever.
   O conto escrevia-se por si próprio, e eu tinha dificuldade em conduzi-lo. Pedi outro rum Saint James, observando a moça todas as vezes que levantava os olhos ou quando fazia a ponta do lápis, com um apontador, deixando as raspas encaracoladas no pires que tinha sob o cálice. — Eu te vi, oh beleza, tu me pertences agora, seja quem for que estejas esperando e mesmo que nunca te veja mais em toda a minha vida  pensei. Tu me pertences, toda Paris me pertence e eu pertenço a este caderno e a este lápis. Voltei a escrever, entrei a fundo na história e me perdi nela. Agora quem a escrevia era eu; o conto não se escrevia mais a si próprio, de modo que não tornei a levantar a cabeça. Esqueci-me do tempo, do lugar em que me encontrava e nem sequer mandei vir outro rum Saint James. Cansara-me dele sem pensar nisso. Terminei o conto, afinal, sentindo-me realmente cansado. Reli o último parágrafo e, quando levantei os olhos à procura da moça, não a encontrei mais. Tomara que tenha ido com um homem decente, pensei. Mas sentia-me triste.
   Fechei o caderno, coloquei-o no bolso de dentro, pedi ao garçom uma dúzia de portugaises e meia garrafa do vinho branco seco da casa. Depois de escrever um conto sentia-me sempre vazio e simultaneamente triste e feliz, como se tivesse acabado de me entregar ao amor físico: estava seguro de que este conto que acabara de escrever era muito bom, embora não soubesse quanto o era antes de lê-lo de ponta a ponta, no dia seguinte. Comi as ostras, que possuíam forte gosto de mar e um leve travo metálico que o vinho branco gelado lavava, deixando somente o gosto de mar e a suculenta textura; à medida que ia sorvendo o líquido frio de cada concha e o fazia descer acompanhado do estimulante sabor do vinho, o sentimento do vazio me foi abandonando e me vi de novo feliz, cheio de planos.


Ernest Hemingway. Paris é uma Festa (A Moveable Feast), 1964.
Tradução de Enio Silveira

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Nem eu nem ninguém mais pode caminhar esse caminho por você - Walt Whitman


Nem eu nem ninguém mais pode caminhar esse caminho por você. Você deve caminhá-lo por si mesmo. Não está longe, está ao alcance. Talvez você esteja nele desde que nasceu e não saiba. Talvez esteja em todas as partes, sobre a água e sobre a terra.

Walt Whitman

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Alhos de Bugalhos — João Guimarães Rosa

Alhos e Bugalhos

Misturar alhos com bugalhos é tomar uma coisa por outra, fazer confusões. Há também a forma: falo-lhe em alhos, responde-me com bugalhos, consignada em vários adagiários e que significa: Pergunto-lhe uma coisa, responde outra. Há uma outra locução com o mesmo sentido: Confundir germano com gênero humano. João Guimarães Rosa apresenta uma extensão, no conto: “A simples e exata estória do burrinho do comandante”: “O Sr. pode às vezes distinguir alhos de bugalhos, e tassalhos de borralhos e vergalhos de chanfalhos, e mangalhos... Mas, e o vice-versa?"

R. Magalhães Junior. Dicionário Brasileiro de Provérbios, Locuções e Ditos Curiosos, 1974

Pandemônio — John Milton

Pandemônio

Definida hoje por nossos dicionários como conluio de indivíduos para fazer mal ou armar desordens; o Inferno; tumulto; balbúrdia e coisas semelhantes, pandemônio é uma palavra inventada pelo famoso poeta inglês John Milton em seu grande poema O Paraíso Perdido. Aliás, ele escrevia Pandemonium, com maiúscula, e no seu poema tal lugar é o Palácio dos Diabos, ou a capital do Inferno. Embora criada artificialmente, tal palavra tem raízes gregas perfeitas: pan, que significa todos, e daimon, demônios, ou seja, concentração ou assembléia de demônios.

R. Magalhães Junior. Dicionário Brasileiro de Provérbios, Locuções e Ditos Curiosos, 1974

Serendipidade — James M. Schlatter

Serendipidade

Em dezembro de 1965, eu estava trabalhando com o Dr. Mazur na síntese do tetrapeptídeo terminal-C da gastrina. Nós estávamos fazendo compostos intermediários e tentando purificá-los. Particularmente, em uma ocasião em dezembro de 1965, eu estava recristalizando o aspartilfenilalanina metil éster (aspartame) que havia sido preparado... e dado a mim pelo Dr. Mazur. Eu estava aquecendo o aspartame em um frasco com metanol quando a mistura pulou para fora do frasco. Como resultado, um pouco do pó ficou nos meus dedos. Um pouco mais tarde, ao lamber meu dedo para pegar uma folha de papel, percebi um sabor doce muito forte. Inicialmente pensei que pudesse haver um pouco de açúcar em minhas mãos do começo do dia; entretanto, eu logo percebi que isso não podia ser verdade, pois eu havia lavado minhas mãos neste meio-tempo. Assim, remontei a origem do pó em minhas mãos até o recipiente no qual havia colocado o aspartilfenilalanina metil éster cristalizado. Achei que este éster dipeptídeo não deveria ser tóxico, e assim provei um pouco dele e descobri que era a substância que eu saboreara anteriormente em meu dedo.

James M. Schlatter — Aspartame: Fisiologia e Bioquímica, 1984.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Uma noite em lztapa — Aldo Buzzi (Nota)

Uma noite em Iztapa

Me lembro de uma noite em lztapa, às margens do pacífico, na Guatemala. A lua despontava por trás do bambual como um imenso disco vermelho. Era a hora em que as escritoras embebem suas penas no tinteiro e as macacas gritadoras, deslocando-se em bandos para o alto dos galhos, rugem como leões.

Aldo Buzzi - Viagem à Terra das Moscas, 1987

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

As Coisas Pesam Mais se São Olhadas — Julio Cortázar

Julio Cortázar. Os Prêmios, 1975

O Fusca Digerido de H.S. — Poema sobre a seca em SP

O Fusca Digerido


A seca que atinge 70 cidades em São Paulo
Seca rios antes cobertos de água
E hoje mostram-se fantasmas de outras décadas
Pesados objetos afundados em antigos acidentes

Vejo que até uma ponte foi erguida logo ao lado
Também vejo como em uma pintura surreal
Essa terra seca onde pesava o seu leito de águas
Revelar-se uma terra escamada e escoriaçada

Penso nas portas do carro que abriram-se no choque
E por força da ação das águas ficaram escancaradas
E é provável terem assim salvado os seus ocupantes
E os vejo nadando de volta para a superfície

Agora é tudo um mormaço de ar quente
E a água sumiu bebida e evaporada
Deixando com isso treze milhões de sedentos
E um fusca enferrujado para lembrar os ali afogados

Herman Schmitz, Londrina 16 de outubro de 2014