terça-feira, 28 de julho de 2015

Com a arte não se brinca — Julio Cortázar e Man Ray

O Presente, Man Ray.


Man Ray pensava em seu ferro de engomar cheio de pregos e outros estupendos objetos quando afirmou: De maneira nenhuma eles deviam ser confundidos com as pretensões estéticas ou o virtuosismo plástico que em geral se espera das obras de arte. Naturalmente - acrescentava a corujinha de óculos pensando na tal senhora -, os visitantes da minha exposição ficavam perplexos e não se atreviam a divertir-se, porque uma galeria de pintura é considerada um santuário onde não se brinca com a arte.

E não se atreviam a divertir-se. Man Ray, como você gostaria de ter ouvido o que eu ouvi alguns meses atrás em Genebra, onde uma galeria da cidade velha prestava uma homenagem ao Dadá. Lá estava justamente o seu ferro cheio de pregos, e enquanto a senhora lá de cima o contemplava com gélido respeito, uma garota ruiva mantinha esse diálogo exemplar com outra quase loura:

— No fundo, não é tão diferente do meu ferro.

— Como assim?

— É, com esse você se espeta e com o meu você se queima.


***

Julio Cortázar – A Volta ao Dia em 80 Mundos, 1967.

Uma Confusão Cotidiana — Franz Kafka (miniconto)

"Franz Kafka" por Robert Crumb.


UMA CONFUSÃO COTIDIANA 

Franz Kafka







Um incidente cotidiano: suportá-lo, uma confusão cotidiana. A precisa fechar com B, de H, um negócio importante. Vai a H para uma conversa prévia, percorre o caminho de ida e o de volta em dez minutos cada, e em casa se gaba dessa particular rapidez. No dia seguinte vai de novo a H, desta vez para o fechamento definitivo do negócio. Tendo em vista que este, segundo as previsões, exigirá várias horas, A parte de manhã bem cedo. Mas embora todas as circunstâncias — pelo menos na opinião de A — sejam exatamente as mesmas do dia anterior, dessa vez ele precisa de dez horas para fazer o caminho até H. Quando chega lá à noite, exausto, dizem-lhe que B, irritado com o não-comparecimento de A, tinha ido fazia meia hora para a aldeia de A e que na verdade deveriam ter-se encontrado no caminho. Aconselham A a esperar. Mas A, angustiado com a realização do negócio, parte imediatamente e vai às pressas para casa.

Dessa vez, sem prestar atenção especial nisso, percorre o caminho em não mais que um instante. Em casa fica sabendo que de fato B tinha chegado muito cedo — logo depois da partida de A; na realidade tinha encontrado A na porta da casa, o havia lembrado do negócio, mas A dissera que agora não tinha tempo, que precisava partir a toda.

Apesar do comportamento incompreensível de A, no entanto, B ficara ali, esperando A. Já havia perguntado várias vezes se A ainda não tinha voltado, mas ainda estava lá em cima, no quarto de A. Feliz com o fato de agora poder falar com B e de poder explicar-lhe tudo, A sobe correndo a escada. Já está quase no alto quando tropeça, distende um tendão e, praticamente desmaiado de dor, incapaz até de gritar, apenas gemendo no escuro, ele ouve B — impossível distinguir se a grande distância ou bem ao seu lado — descer a escada batendo os pés, furiosos, e desaparecer para sempre.

***

Franz Kafka — Narrativas do Espólio.

quarta-feira, 15 de julho de 2015

O Gato Velho — Poema e desenho de Patricia Highsmith

Desenho da autora.


O GATO VELHO



Nada foi feito para mim,
Não, nem mesmo a lareira,
Pois algumas vezes sinto frio e não há fogo,
E outras vezes, não me deixam ir até ali.
Sombras me entediam, e se acaso são um mistério
É bem sem graça. Meus ta-tataranetos
Brincam insensatos ao meu redor, mas eu agora já sei
Que os forros das coisas são apenas forros,
E que atrás da porta entreaberta
Há outra sala como esta aqui.
Gosto de sentar com meus olhos semicerrados,
Porque já vi de tudo
E minhas memórias são bem mais interessantes.
Estou em paz com tudo.
Até os camundongos podem vir a poucos centímetros,
Sabendo que aposentei nossa antiga guerra.
Apenas meus ta-tataranetos
Me irritam às vezes, puxando meu rabo,
Esbarrando e escorregando por cima de mim.
Dou-lhes uns bons tapas nas orelhas,
E volto para onde deixei meus pensamentos.
Estou em paz com tudo.




Patricia Highsmith

domingo, 12 de julho de 2015

Para fazer um poema dadaísta — Tristan Tzara



Para fazer um poema dadaísta

Pegue num jornal.

Pegue numa tesoura.

Escolha no jornal um artigo que tenha o tamanho que pensa dar ao seu poema.

Recorte o artigo.

Recorte seguidamente com cuidado as palavras que formam o artigo e meta-as num saco.

Agite com cuidado.

Seguidamente, retire os recortes um por um.

Copie conscienciosamente

segundo a ordem pela qual foram saindo do saco.

O poema parecer-se-á consigo.

E você tornou-se um escritor infinitamente original e duma sensibilidade encantadora, ainda que incompreendida pelo vulgo.


Tristan Tzara

segunda-feira, 6 de julho de 2015

A Morta — Guy de Maupassant (Conto fantástico)



A Morta

Guy de Maupassant



Eu a amei perdidamente! E por que amamos? É mesmo estranho ver no mundo somente um ser, ter no espírito um pensamento único, no coração um desejo, na boca um só nome: um nome que se eleva incessantemente, que sobe, como a água de uma fonte, do íntimo da alma à flor dos lábios, e que se pronuncia, que se repete, que se murmura continuamente, por toda parte, como uma prece elegíaca.

Não contarei nossa história. O amor tem só uma, a mesma de sempre. Encontrei-a na vida e amei-a. Eis tudo. E durante um ano vivi de sua carícia, no aconchego de seus braços, embalado por sua voz, iluminado por seu olhar, aprisionado, envolvido, ligado a tudo que emanava de seu ser, mas de tal maneira que não sabia quando era tarde ou aurora, que ignorava se era morto ou vivo, sobre a terra ou fora da terra...

E ela morreu!

Como? Não sei mais!

Ela saiu numa noite chuvosa e retornou encharcada; e, no outro dia, tossiu. Tossiu por uma semana, de cama.

O que aconteceu? Não sei mais.

Os médicos chegavam, receitavam, partiam... Vinham remédios e uma mulher os ministrava. Suas mãos ardiam. A sua fronte estava úmida e quente. Tinha um olhar brilhante e triste. Eu falava com ela, ela me respondia. O que dissemos um ao outro? Não sei mais! Esqueci tudo, tudo!

E ela morreu... Lembro-me ainda de seus suspiros, tão fracos, os últimos. A enfermeira murmurou apenas — “Ah!”. E eu compreendi, compreendi tudo!

Não soube de mais nada. Nada! Ouvi um padre dizer: “sua amante”. Parecia que a insultava. Pois já que ela morrera, ninguém mais tinha o direito de saber disto. Eu o mandei embora. Veio um outro, muito bom, muito meigo.

Eu chorei quando ele me falou sobre ela.

Consultaram-me a respeito de mil coisas relativas ao enterro. Não sei mais de nada. Entretanto, recordo-me tão bem do caixão, do ruído das marteladas, de quando a encerraram lá dentro!...

E ela foi enterrada! Enterrada! Ela, numa cova! Vieram poucas pessoas, alguns amigos. Fugi. Saí a caminhar muito tempo pelas ruas. Depois voltei para casa. No outro dia, viajei.

Retornei hoje a Paris.

Quando revi o meu quarto — o nosso quarto, o nosso leito, os nossos móveis, toda essa casa onde ficara, tudo o que resta de uma vida após a morte — apoderou-se de mim uma mágoa tão intensa que tive necessidade de escancarar as janelas e precipitar-me na rua. Não podia viver no meio dessas coisas, dessas paredes que a encarceraram, e que deviam conservar ainda, em suas fissuras imperceptíveis, átomos dela, da sua carne, do seu hálito. Pus o chapéu para sair. De repente, ao transpor a porta, passei pelo grande espelho do vestíbulo, que ela mandara instalar ali para se ver todos os dias, de alto a baixo, para ver se estava bem vestida, correta e elegante, das botinas ao arranjo dos cabelos.

E me detive diante desse espelho que tanta vez a tinha refletido. Tantas vezes que ainda devia guardar a sua imagem. Imóvel, trêmulo, fixei os olhos no vidro liso, profundo, vazio, que encerrara ela toda, que a possuíra tanto como eu, como o meu olhar apaixonado... Parecia que esse vidro nunca fora frio! Quanta saudade!

Saudade! Espelho doloroso e ardente, espelho vivo e horrível que me faz sofrer tantas torturas! Felizes dos homens em cujo coração, como num espelho em que reflexos deslizam e se apagam, esquece tudo o que conteve, tudo o que se passou diante dele, tudo o que se contemplou em sua aflição e no amor!

Saí torturado e, alheado de mim mesmo, sem desejar, sem o saber, pus-me a caminho do cemitério. Achei seu túmulo muito singelo, na simplicidade de uma cruz de mármore com algumas palavras:

“Amou, foi amada e morreu”.

 

Ela estava ali, ali embaixo, putrefeita. Que horror! Eu chorava, soluçava, à luz de um sol de tarde.

E assim fiquei muito tempo, muito tempo. Depois olhei em torno: uns farrapos de noite enlutavam o espaço. Então, um desejo bizarro, louco, um desejo de amante, desvairado, tomou-me avidamente. Quis passar a noite junto dela, a noite última, a chorar em seu túmulo.

Mas me veriam. Iriam me expulsar. Que fazer? Ergui-me e comecei a errar pela cidade morta dos desaparecidos.

E eu andava, andava... Como é pequena esta cidade, comparada à outra, à outra onde vivemos. Todavia, como os mortos são mais numerosos do que os vivos! Precisamos de altas construções, ruas enormes, tanto lugar para as quatro gerações que, ao mesmo tempo, enxergam a luz do sol, bebem água da fonte, o vinho das vinhas e comem o trigo dos campos.

E para todas as gerações dos mortos, para toda a escala da humanidade vinda até nós — quase nada —, um pedaço de chão... quase nada! A terra se apodera deles, o esquecimento apaga lembranças dos seus rostos. Adeus.

Ao fim do cemitério habitado vi, de repente, o cemitério em abandono, onde os defuntos, ressequidos de velhos, acabam por se confundir com o solo, onde as próprias cruzes apodrecem e onde serão amanhã enterrados os que vierem por último. Viceja de rosas silvestres, de ciprestes vigorosos e negros, um jardim triste e magnífico, nutrido de carne humana.

Estava só, inteiramente só. Apoiei-me a uma árvore verde. Escondi-me entre as suas ramagens pesadas e sombrias e esperei, agarrado ao tronco, como um náufrago sobre destroços.

***

Quando baixou a noite escura, muito escura, deixei meu refúgio e comecei a caminhar mansamente, a passos lentos e surdos, sobre essa terra cheia de mortos.

Andei a esmo muito tempo, muito tempo. Não a encontrava. De braços estendidos, olhos escancarados, tateando as catacumbas com as mãos, com os joelhos, com o peito, errava sem a encontrar. Tocava, apalpava, como um cego à procura de um caminho, apalpava lajes, cruzes, grades de ferro, coroas de vidro, coroas de flores mutiladas. Tateava nomes, com meus dedos, correndo-os sobre as letras. Que noite! Que noite!

Nem uma réstia de luar! Que noite! Tive medo, um pavor alucinante, nesses caminhos estreitos, entre as fileiras de túmulos! Túmulos! Túmulos, sempre túmulos! À minha volta, além, mais além, por toda a parte, túmulos!

Sentei-me sobre uma sepultura. Não podia mais andar, porque meus joelhos vergavam de exaustos. Ouvia o meu coração bater. Ouvia outro ruído, também. O que era? Um ruído confuso, inexplicável. Vinha esse ruído no meu cérebro alucinado, da noite impenetrável, ou da terra misteriosa, adubada de cadáveres humanos? Olhei ao redor.

Quanto tempo fiquei assim? Não sei. Estava paralisado pelo terror, desvairado de espanto, quase a desfalecer, quase a morrer.

De súbito, tive a impressão de que a laje da tumba em que eu me sentara se movia. Movia-se como se alguém a levantasse. De um salto, precipitei-me sobre o túmulo próximo e vi, sim, eu vi a pedra erguer-se lentamente e surgir um esqueleto nu, que a empurrava com os ombros. Via muito bem, via tudo, não obstante a escuridão da hora. Pude ler sobre a cruz:

“Aqui repousa Jacques Olivant, morto aos cinquenta anos. Amou os seus, foi bom e honesto e morreu na paz do Senhor”.

 

Agora o morto lia também as coisas gravadas na lápide tumular. Tomou depois uma pedra pontiaguda e pôs-se a raspar com cuidado o epitáfio. Apagou-o lentamente, cravando a órbita vazia no lugar em que estava escrito. E com a ponta do osso que fora o seu indicador, escreveu em letras luminosas, com estas linhas que as crianças riscam na parede com um pirilampo vivo:

“Aqui repousa Jacques Olivant, morto aos cinquenta anos. Abreviou com crueldade os dias de seu pai, de quem desejava herdar, maltratou a esposa, atormentou seus filhos, traiu seus vizinhos, roubou quanto pôde e morreu miserável”.

 

Terminando, o morto ficou a contemplar a sua obra. E eu vi, voltando-me, que todos os túmulos se abriam, que todos os cadáveres os deixavam, que todos apagavam as lisonjas, escritas pelos parentes na pedra funerária, para restabelecer a verdade.

E vi que todos tinham sido carrascos do próximo, odiosos, hipócritas, mentirosos, caluniadores, invejosos, e que haviam roubado, traído, praticado os atos mais vergonhosos, mais abomináveis, todos estes bons pais, estes maridos fiéis, estes filhos dedicados, estas donzelas castas, estes comerciantes probos, estes homens e estas mulheres irrepreensivelmente honestos.

Escreviam todos ao mesmo tempo, no pórtico de sua morada eterna, a cruel, a terrível, a santa verdade que os vivos sobre a terra ignoravam ou fingiam ignorar.

Lembrei-me de que ela devia também riscar a sua legenda.

Já sem medo algum, correndo por entre as covas abertas, por entre os cadáveres, precipitei-me para onde com certeza a encontraria.

E sobre a cruz de mármore, onde antes se lera: “Amou, foi amada e morreu”, vi agora:

“Saindo um dia para trair o seu amante, adoeceu sob a chuva e morreu”.

 

Parece que, ao raiar do dia, levaram-me inanimado da beira do túmulo.

***


Título Original: La Morte
Ano: 1887
Tradução de autor desconhecido em 1909 (Recuperação, atualização ortográfica e adaptação textual: Paulo Soriano.)