sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Os Nomes — Paul Auster (fragmento)


OS NOMES





— Nesse caso – disse ele –, fico feliz em lhe fazer esse favor. Meu nome é Quinn.

— Ah – disse Stillman, pensativo, balançando a cabeça. – Quinn.

— Sim, Quinn. Q-U-I-N-N.

— Entendo. Sim, sim, entendo. Quinn. Hmmm. Sim. Muito interessante. Quinn. Uma palavra muito sonora. Rima com Caim, não é?

— É isso mesmo. Caim.

— E também com motim, se não estou enganado.

— Não está não.

— E também com tintim por tintim. Não é mesmo?

— Exatamente.

— Hmmm. Muito interessante. Vejo muitas possibilidades nessa palavra, esse Quinn, essa... quintessência... de quididade. Quina, por exemplo. E quinhão. E quase. E quinze. Hmm. Rima com rim. Para não falar em fim. Hmmm. Muito interessante. E sim. E vim. E gim. E mim. Hmmm. Rima até com djim. Hmmm. E se a gente pensar direito, com brim. Hmmm. Sim, muito interessante. Gosto imensamente do seu nome, senhor Quinn. Ele se arvora em muitas pequeninas direções ao mesmo tempo.

— Pois é, eu mesmo já notei isso muitas vezes.
***



PAUL AUSTER. Cidade de Vidro, 1985.

terça-feira, 13 de outubro de 2015

A conversa mais cretina do mundo — O Apanhador no Campo de Centeio (Trecho)


A Sally não falou muito, a não ser para se babar com os Lunts, porque estava ocupada em achar tudo bacana e em ser simpática. Aí, de repente, descobriu do outro lado do saguão um imbecil qualquer que ela conhecia. O cara estava de terno de flanela cinza-escuro e um desses coletes de xadrez. Completamente metido a besta. Crente que estava abafando. Ele estava encostado na parede, fumando pra chuchu, dando a impressão de que estava mortalmente aporrinhado. A Sally ficou repetindo: "Conheço aquele rapaz de algum lugar". Ela sempre conhecia alguém, em qualquer lugar que estivesse, ou pelo menos pensava que conhecia. Ficou repetindo tanto, que me enchi e disse: — Se conhece, porque não vai até lá e dá um beijinho nele? Aposto que ele vai gostar.

Ela ficou furiosa comigo. Finalmente, o bobalhão nos viu e veio cumprimentá-la. Valia a pena ver os dois se cumprimentando. Parecia até que não se viam há uns vinte anos. Parecia até que os dois tomavam banho juntos, na mesma banheira, quando eram crianças. Velhos faixas. Era nojento. O mais engraçado é que eles, provavelmente, só se haviam encontrado uma única vez, em alguma festa cretina. Afinal, quando deram a baboseira por terminada, a Sally resolveu me apresentar. O nome do cara era George qualquer coisa – nem me lembro – e estudava no Andover. Grande coisa. Dava gosto ver a cara do sujeito quando a Sally pediu a opinião dele sobre a peça. Tratava-se de um desses cretinos que precisam de espaço quando começam a falar. Deu um passo para trás e pisou em cheio no pé de uma dona que estava bem ali. Acho que não sobrou um dedo inteiro no pé da infeliz. Disse que a peça em si não era nenhuma obra-prima, mas os Lunts, evidentemente, eram uns anjos. Anjos, pomba! Anjos. Era o fim. Aí, ele e a Sally começaram a falar de uma porção de gente que os dois conheciam. Era a conversa mais cretina do mundo.

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J. D. Salinger. O Apanhador no Campo de Centeio, 1951.

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Ler para Viver — Alberto Manguel

Anselm Feuerbach - Paolo e Francesca


Ler para Viver

(Gustave Flaubert —
Carta a mlle. de Chantepie, junho de 1857)




Com uma das mãos pendendo ao lado do corpo e a outra apoiando a cabeça, o jovem Aristóteles lê languidamente um pergaminho desdobrado no seu colo, sentado numa cadeira almofadada, com os pés confortavelmente cruzados. Segurando um par de óculos sobre o nariz ossudo, um Virgílio de turbante e barba vira as páginas de um volume rubricado, num retrato pintado quinze séculos depois da morte do poeta. Descansando sobre um degrau largo, a mão direita segurando de leve o rosto, são Domingos está absorto no livro que segura frouxamente entre os joelhos, distanciado do mundo. Dois amantes, Paolo e Francesca, comprimem-se sob uma árvore, lendo um verso que os levará a perdição: Paolo, tal como são Domingos, toca o rosto com a mão; Francesca segura o livro aberto, marcando com dois dedos uma página que jamais será alcançada. A caminho da escola de medicina, dois estudantes islâmicos do século XII param para consultar uma passagem num dos livros que carregam. Apontando a página da direita do livro que traz aberto no colo, o Menino Jesus explica sua leitura para os anciãos no templo, enquanto eles, espantados, não convencidos, viram inutilmente as páginas de seus respectivos tomos em busca de uma refutação.

Tão bela quanto em vida, observada por um cão de guarda, a nobre milanesa Valentina Balbiani folheia seu livro de mármore sobre a tampa de um sepulcro onde está esculpida, em baixo-relevo, a imagem de seu corpo descarnado. Longe da cidade, turbulenta, em meio a areia e rochas crestadas, são Jerônimo, tal como um velho passageiro à espera do trem, lê um manuscrito do tamanho de um tablóide; em um canto, como compartilha com seu amigo Gilbert Cousin uma anedota do livro que está lendo e que repousa aberto sobre o atril à sua frente. Ajoelhado entre flores de oleandro, um poeta indiano do século XVII cofia a barba e, segurando na mão esquerda o livro ricamente encadernado, reflete sobre os versos que acaba de ler em voz alta para captar-lhes plenamente o sabor. Junto a uma longa fileira de prateleiras grosseiramente talhadas, um monge coreano puxa uma das 80 mil tabuinhas de madeira de Tripitaka coreana, obra com sete séculos de idade, e segura-a diante de si, lendo com atenção silenciosa. "Estude para ser sereno", é o conselho dado pelo vitralista anônimo que retratou o pescador e ensaísta Izaak Walton lendo um pequeno livro às margens do rio Itchen, perto da catedral de Winchester.

Completamente nua, uma Maria Madalena bem penteada e ao que parece, não arrependida, lê um grande volume ilustrado, estendida num pano jogado sobre uma rocha no deserto. Usando seus talentos de ator, Charles Dickens segura um exemplar de um de seus romances, do qual irá ler um trecho para um público que o adora. Encostado num parapeito de pedra às margens do Sena, um jovem mergulha em um livro (qual será?) mantido aberto em sua mão. Com impaciência, ou apenas entediada, uma mãe segura um livro diante de seu filho ruivo, enquanto ele tenta seguir as palavras com a mão direita sobre a página. Cego, Jorge Luis Borges aperta os olhos para melhor escutar as palavras de um leitor que não se vê. Numa floresta de manchas de cor, sentado sobre um tronco coberto de musgo, um menino segura com ambas as mãos um pequeno livro que lê em docequietude, senhor do tempo e do espaço.

Todos esses são leitores, e seus gestos, sua arte, o prazer, a responsabilidade e o poder que derivam da leitura, tudo tem muito em comum comigo.

Não estou sozinho.



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Alberto Manguel. Uma história da Leitura, 1996.