quinta-feira, 27 de novembro de 2014

E se o Mundo Fosse Acabar — Marcel Proust

Marcel Proust, Jacques-Émile Blanche (Fotografo francês 1861–1942).

E se o Mundo Fosse Acabar...

   
   Uma pequena questão: se o mundo fosse acabar, o que você faria?

   Creio que a vida nos pareceria bruscamente deliciosa, se estivéssemos realmente ameaçados de morrer como você diz. Pense, de fato, em quantos projetos, viagens, amores, estudos nessa — nossa vida — ficam sem solução, invisíveis pela nossa preguiça e ficam eternamente adiados.

   Mas se tudo isso fosse para sempre impossível, quão belo não nos pareceria! Há, se realmente o cataclismo estivesse perto, desta vez não deixaríamos de visitar as novas salas do Louvre, de ajoelharmos aos pés da Srta. X... De visitar as Índias. Mas o cataclismo não acontece, não fazemos nada disso tudo, pois estamos no meio da vida normal, aonde a negligência esmorece o desejo.

   E entretanto, não deveríamos ter necessidade de cataclismos para amar a vida. Bastaria pensar que somos humanos e que esta tarde podemos encontrar a morte.


Marcel Proust, Essais et articles, 1922

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Glossário de Miados — Guillermo Cabrera Infante

Guillermo Cabrera Infante

A linguagem de Offenbach


   Offenbach se comunica conosco com algo mais do que miados. Seu repertório de sons forma uma linguagem peculiar em que o ouvido treinado busca e encontra significados.

Brrr é um ronrom de prazer e de contentamento.

Burrr é o ronrom alongado até uma forma de protesto: não se deve continuar acariciando-o, ou se deve acariciá-lo em outra parte do corpo.

Miau é a saudação matinal, uma espécie de bom-dia que Offenbach nunca deixa de dar.

Miauuu é para pedir algo: de comida até a abertura de uma janela para sentir o cheiro do jardim.

Miuu é sempre uma advertência: significa que está presente e, portanto, não se deve pisoteá-lo, ou, o que é pior, passar por cima.

Miu é uma simples saudação a qualquer hora do dia.

Miawou é a saudação a quem volta para casa. É também uma forma de queixa: ficou muito tempo sozinho.

Mia miau é uma exigência: comida atrasada ou alguém que não quer carregá-lo ou ceder-lhe um assento.

Miau simples, mas seguido ou precedido de bocejo, é soberano aborrecimento: não se deve esquecer que Offenbach é puro-sangue e todo o comportamento nele é francamente soberano: não pede, exige.

Miaorru é quando quer brincar.

Rorroua é sempre rugido: atavismo da selva ou resíduos do macho que ainda existem nele.


Guillermo Cabrera Infante, Offenbach, 1998.

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Vivamos, minha Lésbia, e amemos — Caio Valério Catulo

Vivamos, minha Lésbia, e amemos

   
   Vivamos, minha Lésbia, e amemos, não façamos caso a toda essa falação dos velhos por demais cautelosos.

   Os astros podem ocultarem-se e reaparecerem, porém nós, estamos aqui para dormir por toda a eternidade, tão logo acabe a breve chama da nossa vida. Dá-me mil beijos e depois cem, outros mil logo em seguida, e mais outros cem. Comece novamente até chegar a outros mil e ainda a mais outros cem. E depois de termos acumulado muitos milhões, vamos misturá-los até perdermos a conta ou para que nenhum invejoso venha mandingar quando saiba que demos tantos beijos.

Caio Valério Catulo ( Verona, 87 ou 84 a.C. - 57 ou 54 a.C.)
Tradução de Herman Schmitz

terça-feira, 18 de novembro de 2014

O Rato e o Eremita - Panchatantra

O RATO E O EREMITA

"O ignóbil que atinge uma posição elevada atenta contra a vida do seu amo, como o rato que, tendo chegado a ser tigre, tentou matar o eremita".

   Vivia, no bosque da penitência consagrado ao grande Gautama, um eremita chamado Maátapas.
   Um dia, encontrou esse eremita um ratinho que ia sendo carregado por um corvo. O eremita, compassivo por natureza, alimentou-o com grãos de arroz e passou a criá-lo.
   Até o dia em que surgiu um gato correndo atrás do rato para comê-lo. Ao vê-lo, correu o rato a se esconder no colo do eremita.   Disse então o eremita:
   — Rato, transforma-te tu em gato.
   Transformado em gato, porém, fugia o animal ao ver um cão.   Disse então o eremita:
   — Se tens medo do cão; transforma-te tu também em cão.
   Transformado em cão, porém, tinha o animal medo do tigre.
   Transformou então o eremita o cão em tigre.
   Para o eremita, entretanto, aquele tigre era tido como rato. Assim também era para os que viam o eremita e o tigre, que diziam:
   — Foi este eremita que transformou o rato em tigre.
   Ouvindo tais palavras, pensou um dia o tigre: 
   — Enquanto vida tiver este eremita, vida terá a infamante história da minha forma primitiva.
   Depois de assim refletir, correu o tigre para matar o eremita.     Percebendo-lhe a intenção, disse então o eremita:
   — Retorna tu a tua forma de rato.
   E assim se fez.



PANCHATANTRA (300 a.C.)
Tradução de Celina Portocarrero