domingo, 21 de setembro de 2014

O Suplício da Esperança — de Villiers de L'Isle-Adam por João Alphonsus

O senhor conhece um conto de Villiers de L'Isle-Adam, o Suplício da Esperança? Não?

Um inquisidor determinou que se suplicie uma de suas vítimas, como último recurso para tentar a salvação de sua alma. Com a esperança de poder fugir da prisão, o homem descobre que a porta do calabouço foi esquecida com a fechadura aberta, empurra-a e sai pelos intermináveis corredores; os frades passam por ele; sem vê-lo em algum cotovelo de muro em que procurava se ocultar; um deles, que vem discutindo com outro sobre alto problema teológico, pousa sobre o fugitivo o olhar distraído, e o fugitivo se imobiliza num calafrio gelado, dentro de um desvão de parede; mas ambos distraidamente se afastam repetindo, entre outras palavras pias, o nome de Cristo: o fugitivo já está vendo a porta de saída, lá fora há luz e ar; se aproxima da liberdade, quando se sente abraçado pelo próprio inquisidor, que o chama de filho e lhe diz para não fugir dali, para não fugir de Cristo…

É assim que guardei a recordação do conto, lido naquele tempo.


In: "Sardanapalo", João Alphonsus. Os Melhores Contos de João Alphonsus. Seleção de Afonso Henriques Neto. São Paulo: Global, 2001.

sábado, 20 de setembro de 2014

Grifo — Antoine Compagnon

Grifo

Ler, com um lápis na mão, como recomendava Erasmo, em De Duplici Copia, assim como todo ensinamento da Renascença, contornar algo do texto com um forte traço vermelho ou negro é traçar o modelo do recorte. O grifo assinala uma etapa na leitura, é um gesto recorrente que marca, que sobrecarrega o texto com o meu próprio traço. Introduzo-me entre as linhas munido de uma cunha, de um pé de cabra ou de um estilete que produz rachaduras na página; dilacero as fibras do papel, mancho e degrado um objeto: faço-o meu. É por isso que na biblioteca toda essa gesticulação íntima me é proibida.

In: COMPAGNON, Antoine. O Trabalho da Citação. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996.

A Próxima Aldeia — Franz Kafka

A Próxima Aldeia — Franz Kafka

Meu avô costumava dizer: "A vida é espantosamente curta. Para mim ela agora se contrai tanto na lembrança que eu por exemplo quase não compreendo como um jovem pode resolver ir a cavalo à próxima aldeia sem temer que — totalmente descontados os incidentes desditosos — até o tempo de uma vida comum que transcorre feliz não seja nem de longe suficiente para uma cavalgada como essa".

In: Um médico rural, Companhia das Letras, 1999. Tradução de Modesto Carone.

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

François Rabelais — Conselhos do gigante Gargântua a seu filho Pantagruel

Conselhos do gigante Gargântua a seu filho Pantagruel.

"Aconselho-te, meu filho, a que empregues bem a juventude e aproveites na virtude e no estudo [...] Quero que aprendas perfeitamente línguas, primeiramente o grego, depois o latim; em seguida o hebreu, para conhecimento das Sagradas Escrituras. Que não haja história que não conheças, para o que te ajudará a Cosmografia. Das artes liberais, Geometria, Aritmética e Música, já te deram noções quando eras pequeno, na idade de cinco ou seis anos. Continua a estudá-las e estuda todas as regras de Astronomia. [...] O mundo inteiro está cheio de acadêmicos, pedagogos altamente cultivados, bibliotecas muito ricas, de tal modo que me parece que nem nos tempos de Platão, de Cícero, o estudo era tão confortável como o que se vê a nossa volta. […] Eu vejo que os ladrões de rua, os carrascos, os empregados do estábulo hoje em dia são mais eruditos do que os doutores e pregadores do meu tempo..."

Pantagruel é o herói do primeiro romance de François Rabelais "Os horríveis e apavorantes feitos e proezas do mui renomado Pantagruel, rei dos dipsodos, filho do grande gigante Gargântua", publicado em 1532. Pantagruel é filho do gigante Gargântua e de sua mulher Badebec, que morre durante o parto.

Luís de Camões — Ao desconcerto do Mundo

Ao desconcerto do Mundo

Os bons vi sempre passar
No Mundo graves tormentos;
E para mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado.
Assim que, só para mim,
Anda o Mundo concertado.

Luís de Camões

Rimbaud Livre — A Eternidade

A ETERNIDADE — Arthur Rimbaud

De novo me invade.
Quem? — A Eternidade.
É o mar que se vai
Com o sol que cai.

Alma sentinela,
Ensina-me o jogo
Da noite que gela
E do dia em fogo.

Das lides humanas,
Das palmas e vaias,
Já te desenganas
E no ar te espraias.

De outra nenhuma,
Brasas de cetim,
O Dever se esfuma
Sem dizer: enfim.

Lá não há esperança
E não há futuro.
Ciência e paciência,
Suplício seguro.

De novo me invade.
Quem? — A Eternidade.
É o mar que se vai
Com o sol que cai.

Maio 1872

in CAMPOS, Augusto de. Rimbaud Livre, Ed. Perspectiva, 2002.