domingo, 21 de fevereiro de 2016

Balzac Editor e Impressor


BALZAC EDITOR E IMPRESSOR

Se a literatura de cordel rende o suficiente para salvar Balzac do notariado e fazê-lo ganhar a vida, não lhe garante ainda a independência para a realização das grandes obras sonhadas, das quais, passados 26 anos, ainda não escrevera a primeira linha. No contato com os editores que lhe publicavam as produções anônimas, ocorreu a Balzac a ideia de adotar-lhes a profissão. Começaria editando obras alheias, cujo lucro lhe traria o desafogo indispensável para realmente escrever as suas.

A ideia concretizou-se no dia em que o livreiro Urbain Canel encomendou a Balzac um prefácio para a edição, num só volume, das obras completas de La Fontaine que estava preparando. Entusiasmado com o plano de reunir num único volume compacto o material de muitos volumes de formato comum, o prefaciador vislumbrou um êxito comercial extraordinário. Nenhum amador de La Fontaine, pensava ele, deixaria de comprar uma edição tão prática, mesmo que já tivesse as obras soltas. Não contente de escrever o prefácio, pediu ao livreiro que o associasse à empresa. Em breve está constituída a sociedade, com a participação de Balzac, Canel e terceiros para a publicação de Obras completas dos grandes escritores num volume só. O La Fontaine ainda estava no prelo quando se começou a compor o Molière.

Foram os associados que começaram a duvidar do bom êxito, ou, pelo contrário, foi Balzac que, arrebatado pelo otimismo, queria para si todo o lucro fabuloso da iniciativa? Seja como for, em 1º de março de 1826 a sociedade é dissolvida, ficando Balzac como único proprietário. Desinteressando os ex-sócios, compra-lhes a firma por uns 9 mil francos, dinheiro este emprestado pela Dilecta. A necessária inversão de capital novo, 5 mil francos, é fornecida por um sr. D’Assonvillez, amigo da família.

O programa da editora era, na verdade, interessante. Edições análogas realizadas mais tarde (na Inglaterra, das obras completas de Shakespeare; na França, de muitos clássicos franceses nos volumes compactos da edição da Pléiade, na Espanha e no Brasil pelas edições Aguilar etc.) deram excelente resultado. Infelizmente os contemporâneos de Balzac não gostaram da coleção, talvez por causa dos caracteres fininhos, das gravuras mal executadas ou do preço elevado. As livrarias recusavam os La Fontaine e os Molière, e a edição teve de ser vendida aos trapeiros ao preço de papel sujo.

Meditando sobre o insucesso, julgou-o Balzac devido a motivos puramente técnicos. Os impressores trabalhavam mal e cobravam caro. Se a editora possuísse tipografia própria, o trabalho sairia melhor e mais barato, podendo-se vender os livros a preços bem mais acessíveis. Richardson, autor de Clarisse Harlowe, um dos primeiros best-sellers, imprimia por sua conta os próprios livros. Balzac resolve então comprar uma tipografia que justamente nessa ocasião estava à venda; compra-a pela ninharia de 30 mil francos. Como não entende do ofício, associa-se a um tipógrafo, Barbier, a quem indeniza pelo abandono do emprego com 12 mil francos. Mais 15 mil são necessários para pagar a licença, obtida graças à intervenção do conselheiro de Berny (o marido enganado!). O sr. D’Assonvillez, ansioso de recuperar o primeiro capital, empresta um segundo a Balzac. O pai deste consente em entregar ao filho o capital de que enviara os juros a Paris durante os anos da aprendizagem literária. A Dilecta empenha outra parte de seus bens. É só pôr as máquinas em movimento.

Ainda dessa vez a ideia era boa; além dos trabalhos da editora, a tipografia aceitava encomendas vindas de fora — ou antes aceitaria, pois elas escasseiam cada vez mais, e ao cabo de poucos meses a empresa se torna deficitária nas mãos do novo proprietário. Balzac entra a meditar outra vez e sai com outra observação exata: a impressão custava caro porque a tipografia pagava caro os caracteres. Era preciso fabricá-los em casa. Daí a comprar uma fundição de caracteres era um passo. Balzac comprou uma, falida, e ei-lo quase senhor de si. Se conseguisse fabricar o papel (etapa a que necessariamente haveria chegado se a empresa tivesse vivido mais tempo), alcançaria a autonomia completa de sua editora.

As concepções de Balzac não só eram justas mas também essencialmente modernas. Compreendeu perfeitamente a interdependência das indústrias do papel e do livro e foi um dos primeiros a considerar a editora não como simples intermediária entre a tipografia e o público, mas, sim, como coordenadora de múltiplas atividades industriais, isto é, o tipo da grande empresa capitalista.

O que faltava era apenas o capital, as dívidas ainda não tinham começado a ser pagas, e a firma exigia sem cessar novos investimentos. Barbier assustou-se e abandonou a sociedade. A família de Balzac, depois de alguns meses de esforços, recusou-se a supri-lo de dinheiro. Não havia com que pagar os operários, que recorreram ao tribunal. A sra. de Berny, alarmada, entrou a fazer parte da firma; nada, porém, podia já impedir a debandada. Em abril de 1828 seria inevitável a falência se não fosse a intervenção dos pais de Balzac, ciosos da honra do nome. Liquida-se tudo, vendem-se a tipografia e a fundição. Para Balzac resta apenas um dívida de uns 70 e tantos mil francos e uma ótima oportunidade para dar um tiro na cabeça.

Felizmente, dessa vez declinou a solução lógica. Estudante falhado, escrivão despedido, dramaturgo vaiado antes da representação, clandestino romancista, comerciante falido, tendo a cercá-lo o desprezo da família e a comiseração dos amigos, escreve à duquesa de Abrantes: “Posso lhe afirmar, minha senhora, que se tenho uma qualidade é aquela que vê recusarem-me com a maior frequência, aquela que todos os que julgam conhecer-me são unânimes em me negar: energia”.

Durante os anos duros da estreia literária, da editora e da tipografia — que reviveria magnificamente em Ilusões perdidas —, as experiências amargas da sensibilidade, as contínuas decepções e a luta recomeçada tantas vezes, o duro contato cotidiano com a impiedosa vida moderna amadureceram o romancista, que sentia em si um desabrochar de dons maravilhosos e de repente se julgava de posse, ele mesmo nem sabia como, de todos os meios de um artista. Para ele a vida tinha agora dois objetivos: tornar-se famoso e, para pagar as dívidas, rico. Felizmente a mesma atividade levava a esses dois fins. Bastava escrever uma dúzia de obras-primas. Foi o que fez.


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in: A Vida de Balzac, Paulo Rónai, 1946.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

A Ilha das Abóboras — Dicionário de Lugares Imaginários




ABÓBORAS, ILHAS DAS, arquipélago no Atlântico Norte assim chamado devido às enormes abóboras que la cresciam, algumas com dois metros cúbicos. Os habitantes põem-nas no exterior a secar, retiram-lhes a parte de dentro e usam a casca como barcos, o caule como mastro e as folhas como velas. Os habitantes são piratas que pilham as ilhas vizinhas, conhecidos como "piratas das abóboras" pelos seus inimigos, os Nutnaut (ver Ilha das Nozes), contra quem lançam a sua esquadra de abóboras gigantes.

Luciano de Samosata, Historia Verdadeira, sec. II.
in The Dictionary of Imaginary Places © Alberto Manguel