sábado, 25 de outubro de 2014

Ernest Hemingway — Escrevendo em Paris

Escrevendo em Paris

   
   Era um café agradável, quente, limpo e acolhedor. Pendurei minha velha capa no cabide, para secar, coloquei meu surrado e desbotado chapéu de feltro na prateleira que ficava por cima dos bancos e pedi um café au lait. O garçom trouxe-o e eu tirei do bolso do paletó o caderno de notas e um lápis e comecei a escrever.
   Estava escrevendo um conto que se passava em Michigan e, como o dia estava péssimo, frio e ventoso, coloquei em minha história um dia exatamente assim. Eu já conhecia muitos fins de outono, da minha infância, da adolescência e dos primeiros anos da idade adulta, e sabia que há lugares em que se pode escrever melhor sobre essa época do ano do que em outros. É o que se chama de transplantação, pensei, e isso podia ser tão necessário às pessoas como a outras espécies de coisas que crescem. No meu conto os rapazes estavam bebendo, e isso me deu sede: pedi um rum Saint James. Caiu-me bem, naquele dia frio, e continuei a escrever, sentindo-me aquecido, no corpo e no espírito, por aquele esplendido rum da Martinica.
   Uma moça entrou no café e sentou-se perto da janela. Era muito bonita, com um rosto fresco como moeda acabada de cunhar, se é que se possa cunhar moedas em carne tão macia, coberta de pele umedecida pela chuva. Seus cabelos eram negros como a asa de um corvo, cortados rente e em diagonal à face. Olhei para ela, senti-me perturbado e numa grande excitação. Desejei colocá-la no meu conto, ou noutra parte qualquer, mas a moça se colocara de maneira a poder acompanhar o movimento da rua e da entrada do café, e compreendi que estava à espera de alguém. Por isso, continuei a escrever.
   O conto escrevia-se por si próprio, e eu tinha dificuldade em conduzi-lo. Pedi outro rum Saint James, observando a moça todas as vezes que levantava os olhos ou quando fazia a ponta do lápis, com um apontador, deixando as raspas encaracoladas no pires que tinha sob o cálice. — Eu te vi, oh beleza, tu me pertences agora, seja quem for que estejas esperando e mesmo que nunca te veja mais em toda a minha vida  pensei. Tu me pertences, toda Paris me pertence e eu pertenço a este caderno e a este lápis. Voltei a escrever, entrei a fundo na história e me perdi nela. Agora quem a escrevia era eu; o conto não se escrevia mais a si próprio, de modo que não tornei a levantar a cabeça. Esqueci-me do tempo, do lugar em que me encontrava e nem sequer mandei vir outro rum Saint James. Cansara-me dele sem pensar nisso. Terminei o conto, afinal, sentindo-me realmente cansado. Reli o último parágrafo e, quando levantei os olhos à procura da moça, não a encontrei mais. Tomara que tenha ido com um homem decente, pensei. Mas sentia-me triste.
   Fechei o caderno, coloquei-o no bolso de dentro, pedi ao garçom uma dúzia de portugaises e meia garrafa do vinho branco seco da casa. Depois de escrever um conto sentia-me sempre vazio e simultaneamente triste e feliz, como se tivesse acabado de me entregar ao amor físico: estava seguro de que este conto que acabara de escrever era muito bom, embora não soubesse quanto o era antes de lê-lo de ponta a ponta, no dia seguinte. Comi as ostras, que possuíam forte gosto de mar e um leve travo metálico que o vinho branco gelado lavava, deixando somente o gosto de mar e a suculenta textura; à medida que ia sorvendo o líquido frio de cada concha e o fazia descer acompanhado do estimulante sabor do vinho, o sentimento do vazio me foi abandonando e me vi de novo feliz, cheio de planos.


Ernest Hemingway. Paris é uma Festa (A Moveable Feast), 1964.
Tradução de Enio Silveira

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