Marcel Schwob
LUCRÉCIO, POETA
Lucrécio veio ao mundo numa grande família que se retirara da vida social. Seus primeiros dias receberam a sombra do negro pórtico de uma casa alta erguida na montanha. O átrio era severo; os escravos, mudos. Desde cedo o adolescente se viu cercado pelo desprezo da política e dos homens. O nobre Mêmio, que tinha a mesma idade, participou, na floresta, dos jogos que Lucrécio lhe impusera. Juntos, os dois admiraram as rugas das velhas árvores, e espiaram o tremor das folhas ao sol, como um víride véu de luz juncado de manchas de ouro. Muitas vezes contemplaram as costas listradas dos porcos selvagens que fossavam o solo. Atravessaram cachos frementes de abelhas e bandos de formigas em marcha. E certo dia, ao saírem de uma mata de corte, chegaram a uma clareira rodeada de antigos sobros, assentados tão estreitamente que o círculo deles escavava no céu um poço de azul. A paz desse asilo era infinita. Dir-se-ia uma longa estrada clara que ia para o alto do divino ar. Aí foi que Lucrécio teve, num relance, a bênção dos espaços calmos.
Em companhia de Mêmio, deixou o templo sereno da floresta para estudar eloquência em Roma. O antigo fidalgo que governava o solar deu-lhe um professor grego e determinou que só voltasse quando possuísse a arte de desprezar as ações humanas. Lucrécio não tornou a vê-lo: morreu solitário, execrando o tumulto da sociedade. Ao regressar, o jovem trazia para o átrio severo e para o meio dos mudos escravos do solar vazio uma africana linda, bárbara e má. Mêmio regressara à casa dos pais. Lucrécio tinha visto as facções sanguinárias, as guerras dos partidos e a corrupção política. Estava apaixonado.
E, a princípio, a sua vida foi enfeitiçada. Contra as tapeçarias das paredes a africana apoiava as onduladas massas da sua cabeleira. Todo o seu corpo desposara longamente os repousos do leito. Com os braços carregados de esmeraldas translúcidas cingia as ânforas cheias de vinhos espumantes. Tinha um modo estranho de levantar o dedo e de sacudir a testa. Seus sorrisos provinham de uma fonte misteriosa e funda como os rios da África. Em vez de fiar a lã, lacerava-a paciente em farfalhas que lhe esvoaçavam em redor.
Lucrécio desejava ardentemente fundir-se naquele belo corpo. Apertava-lhe os seios metálicos e colava os lábios àqueles lábios de um roxo sombrio. As palavras de amor passaram de um para o outro, foram suspiradas, fizeram-nos rir, e gastaram-se. Os dois tocaram no véu flexível e opaco que separa os amantes. A sua volúpia cresceu em furor e desejou mudar de pessoa. Chegou ao extremo agudo em que se expande à volta da carne, sem penetrar nas entranhas. A africana enroscou-se-lhe dentro do coração selvagem. Lucrécio desesperou-se por não poder realizar o amor. A mulher tornou-se altiva, sombria e silenciosa, tal qual o átrio e os escravos. Lucrécio errou pela sala dos livros.
Foi então que desdobrou o rolo onde um escriba copiara o tratado de Epicuro.
Imediatamente compreendeu ele a variedade das coisas deste mundo e a inutilidade de aspirar às ideias. O Universo pareceu-lhe semelhante às farfalhas de lã que os dedos da africana espalhavam pelas salas. Os cachos de abelhas e as colunas de formigas e o tecido móbil das folhas foram para ele agrupamentos de átomos, e em todo o corpo sentiu um povo invisível e discorde, ávido de separar-se. E os olhares pareceram-lhe raios, mais sutilmente carnudos, e a imagem da linda bárbara, um mosaico agradável e colorido, e teve a sensação de que o fim do movimento dessa infinidade era triste e vão. Assim como às facções ensanguentadas de Roma, com suas tropas de clientes armados e insultadores, contemplou o torvelinho de rebanhos de átomos tintos do mesmo sangue e que disputam entre si uma obscura supremacia. E viu que a dissolução da morte era apenas a emancipação dessa turba turbulenta que se atira a mil outros movimentos inúteis.
Ora, mal recebeu Lucrécio essa instrução do rolo de papiro onde as palavras gregas se achavam entretecidas, como os átomos do mundo, saiu à floresta pelo negro pórtico da casa solarenga dos antepassados. E avistou o dorso dos porcos listrados que tinham o focinho sempre dirigido para a terra. Depois, atravessando a mata de corte, súbito se encontrou no meio do templo sereno da floresta, e seus olhos penetraram no poço azul do céu. Foi ali que fixou o seu descanso.
Dali contemplou a imensidade formigante do Universo: todas as pedras, todas as plantas, todas as árvores, todos os animais, todos os homens com as suas cores, as suas paixões, os seus instrumentos, e a história dessas coisas diversas, e seu nascimento, e suas doenças, e sua morte. E, no meio da morte total e necessária, percebeu claro a morte única da africana, e chorou.
Sabia que as lágrimas vêm de um movimento particular das glandulazinhas dispostas sob as pálpebras e agitadas por uma procissão de átomos saídos do coração, quando o próprio coração sofreu o choque duma sucessão de imagens coloridas que se desprendem da superfície do corpo da amada. Sabia que o amor não é devido senão a uma intumescência de átomos desejosos de se juntar a outros átomos. Sabia que a tristeza causada pela morte não passa da pior das ilusões terrestres, pois a morta cessara de ser infeliz e de sofrer, enquanto aquele que a chorava se afligia com os seus próprios males e sonhava tenebrosamente com a própria morte. Sabia que de nós não resta nenhum simulacro duplo para verter lágrimas sobre o próprio cadáver estendido a nossos pés. Mas, conhecendo exatamente a tristeza e o amor e a morte, e sabendo que estes são imagens vãs quando as contemplamos do espaço calmo a que nos devemos recolher, continuou a chorar, a desejar o amor e a temer a morte.
Eis por que, de regresso à casa alta e sombria dos antepassados, se aproximou da bela africana, que estava preparando uma beberagem numa panela de metal em cima de um braseiro. De fato, ela por sua vez também sonhara, e seus pensamentos remontaram à fonte misteriosa do seu sorriso. Lucrécio contemplou a beberagem ainda fervente, que aos poucos foi clareando e se tornou semelhante a um céu verde e turvo. E a bela africana sacudiu a cabeça e levantou o dedo. Então Lucrécio bebeu o filtro. E imediatamente a razão lhe fugiu, e ele esqueceu todas as palavras gregas do rolo de papiro. E pela primeira vez conheceu o amor, sendo louco; e durante a noite, tendo sido envenenado, conheceu a morte.
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