Fernando Pessoa |
[Estou cansado de confiar em mim próprio, de me lamentar]
25-7-1907Estou cansado de confiar em mim próprio, de me lamentar, de derramar lágrimas de piedade de mim próprio. Acabo de ter uma espécie de cena com a Tia Rita por causa de E. Coelho. No final, senti novamente um daqueles sintomas que se tornam cada vez mais claros e mais horríveis em mim: uma vertigem moral. Na vertigem física há um rodopiar do mundo exterior à nossa volta; na vertigem moral um rodopiar do mundo interior. Pareceu-me perder, por momentos, o sentido das verdadeiras relações das coisas, perder a compreensão, cair num abismo de dormência mental. É uma sensação pavorosa, que nos acomete de um medo desmesurado. Estas sensações estão a tornar-se comuns, parecem abrir-me o caminho para uma nova vida mental, que será, evidentemente, a loucura.
Na minha família não há compreensão do meu estado mental — não, nenhuma. Riem-se de mim, zombam de mim, não me acreditam; dizem que desejo ser alguém extraordinário. Nada fazem para analisar o desejo de ser extraordinário. Não podem compreender que entre ser-se e desejar-se ser extraordinário apenas há a diferença de se acrescentar consciência a esse desejo. É o mesmo que me acontecia brincando com soldadinhos de chumbo Estou cansado de confiar em mim próprio, de me lamentar aos sete e aos catorze anos de idade; no primeiro caso eles eram coisas, no segundo, coisas e brinquedos ao mesmo tempo; todavia, o impulso para brincar com eles persistia, e esse era o estado psíquico real, fundamental.
Não tenho ninguém em quem confiar. A minha família não entende nada. Aos meus amigos não posso incomodar com estas coisas. Não tenho amigos verdadeiramente íntimos, e mesmo que houvesse um amigo íntimo, como o mundo o entende, ainda assim não seria íntimo no sentido em que eu entendo a intimidade. Sou tímido e não gosto de dar a conhecer as minhas angústias. Um amigo íntimo é um dos meus ideais, um dos meus sonhos, mas um amigo íntimo é algo que nunca terei. Nenhum temperamento se adapta ao meu; não há um carácter neste mundo que dê o mais leve indício de se aproximar do que eu sonho num amigo íntimo. Basta, não falemos mais nisto.
Amante ou namorada não tenho; é outro dos meus ideais e um ideal pleno, até à sua alma, de uma total não-existência. Não pode ser como eu o sonho. Ai de mim! Pobre Alastor! Shelley, como eu te compreendo! Poderei confiar na Mãe? Quisera tê-la comigo. Também não me posso confiar a ela, mas a sua presença mitigaria grande parte da minha dor. Sinto-me tão sozinho como um navio naufragado no mar. E sou, na verdade, um náufrago. Então confio em mim mesmo. Em mim mesmo? Que confiança existe nestas linhas? Nenhuma. Quando volto a lê-las, dói-me o espírito ao perceber quão pretensiosas, quão próprias de um diário literário elas são! Em algumas cheguei até a fazer estilo. Porém, nem por isso sofro menos. Um homem tanto pode sofrer vestido de seda como coberto com um saco ou um cobertor roto.
Basta.
In: Obra Essencial de Fernando Pessoa.Prosa Íntima e de Autoconhecimento. Edição Richard Zenith, Assírio & Alvim, Abril 2007
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