Aqui estão as primeiras 1k palavras deste romance escrito pelo húngaro László Krasznahorkai vencedor do prêmio Nobel de Literatura deste ano (2025).
1. A notícia de que eles estavam chegando
Numa manhã do final de outubro, não muito antes que as primeiras gotas das chuvas impiedosamente longas de outono se desprendessem sobre a terra rachada, ressequida, do lado ocidental do assentamento (para que depois o mar pútrido de lama tornasse intransitáveis os caminhos, e também a cidade ficasse inacessível), Futaki despertou ao som de sinos. A quatro quilômetros de distância a sudoeste, nas antigas terras de Hochmeiss, existia uma capela solitária, porém lá não apenas não havia sino como a torre desabara no tempo da guerra, ao passo que a cidade, por sua vez, ficava muito afastada para que dela chegasse algum som. Além disso, o badalar plangente, triunfante, não lembrava sinos distantes, mais parecia que o vento o tinha trazido de bem perto (“Como se viesse do moinho…”) para aqueles lados. Ele apoiou os cotovelos no travesseiro para olhar pela janela minúscula da cozinha, mas através do vidro meio embaçado o assentamento, imerso no amanhecer azulado e no gemido dos sinos que aos poucos silenciaram, ainda estava mudo e inerte: no extremo oposto, entre as casas distantes umas das outras, somente pelas cortinas da janela do médico se filtrava uma luminosidade, nesse caso porque havia anos o morador não conseguia adormecer no escuro. Ele prendeu a respiração para, na vazante do estrépito dos sinos, não perder uma única ressonância extraviada, porque desejava saber a verdade (“Você com certeza ainda está dormindo, Futaki…”) e, para tanto, precisava de cada som, ainda que fosse singular. Com seus passos míticos, macios, de gato, ele se dirigiu, manquitolando sobre a pedra gelada da cozinha, à janela (“Não há ninguém acordado? Ninguém está ouvindo? Mais ninguém?”), abriu os painéis e se debruçou para fora. Um ar cortante, úmido, o golpeou, por um instante ele foi obrigado a fechar os olhos; e por conta do cacarejo dos galos, dos gritos distantes e do zunido agudo, implacável, do vento que minutos antes se alçara, no silêncio profundo de nada serviu aguçar os ouvidos, ele não escutou nada além das batidas surdas do próprio coração, como se tudo fosse uma brincadeira espectral da vigília (“… Como se alguém quisesse me assustar”). Contemplou tristemente o céu ameaçador, os restos queimados do verão cheio de gafanhotos, e de súbito viu passar pelo mesmo ramo de acácia a primavera, o verão, o outono e o inverno, como se sentisse de leve que na esfera imóvel da eternidade a totalidade do tempo gracejasse, enganando, ao superar os obstáculos da confusão reinante, a planura demoníaca, e, uma vez criadas as alturas, ele falseasse, de modo que parecesse inevitável, a loucura… e se viu no crucifixo sobre o berço e o caixão debatendo-se com dificuldade, para, por fim — sem braçadeiras nem condecorações —, se entregar, desnudo, a uma condenação explosiva, seca, nas mãos dos lavadores de mortos, para o riso dos coureiros incansáveis, em que ele depois se veria obrigado a reconhecer sem piedade a medida das coisas humanas, sem que uma única trilha o conduzisse de volta, porque nessa hora ele saberia que se metera com carteadores desonestos numa partida jogada desde bem antes, em cujo final eles lhe roubariam a última arma, a esperança de que voltaria a encontrar em algum momento o caminho de casa. Virou a cabeça para o lado, na direção das construções um dia cheias e barulhentas, hoje decrépitas e abandonadas, na parte oriental do assentamento, e observou amargurado os primeiros raios de sol inchados, vermelhos que irrompiam pelas frestas do teto do estábulo meio destelhado, quase em ruínas. “Afinal, preciso me decidir. Não posso ficar aqui.” Voltou para debaixo da colcha quente, apoiou a cabeça nos braços, mas não conseguiu fechar os olhos: os sinos espectrais o horrorizaram, porém não mais que o repentino silêncio, o mutismo ameaçador, porque sentiu que tudo poderia acontecer. Mas, como ele, nada se moveu na cama, até que entre os objetos silenciosos à sua volta iniciou-se de repente um diálogo (o armário estremeceu, uma panela trepidou, um prato de porcelana deslizou para seu lugar) e ele então de súbito se virou, deu as costas para o suor que escorria da sra. Schmidt, palpou com uma das mãos o copo de água junto da cama e o bebeu de uma vez. Com isso ele se libertou do medo infantil; suspirou, limpou a transpiração da testa e, como sabia que Schmidt e Kráner somente naquela hora tocariam os bois para levá-los do Szikes ao estábulo de Gazda, ao norte do assentamento, onde por fim eles receberiam o dinheiro amargo referente a nove meses de trabalho, e portanto um bom par de horas se passaria até que de lá chegassem em casa, decidiu que tentaria dormir mais um pouco. Fechou os olhos, virou-se de lado, abraçou a mulher, e quase tinha cochilado quando de novo ouviu os sinos. “Droga!” Levantou a colcha, mas no instante em que os pés descalços, calejados, tocaram o piso de pedra da cozinha, os sons de repente cessaram (“Como se alguém tivesse acenado para que parassem…”). Ficou sentado, encolhido na beirada da cama, com as mãos entrelaçadas no colo, em seguida seu olhar pousou no copo vazio: a garganta estava seca, o pé direito formigava, e ele não teve coragem de se deitar de novo nem de se levantar. “Vou embora, o mais tardar amanhã.” Examinou em sequência os utensílios ainda aproveitáveis da cozinha sombria, o fogão sujo de gordura queimada e restos de comida, a cesta de alça esgarçada debaixo dele, a mesa de pés bambos, os retratos empoeirados de santos na parede, as panelas e travessas amontoadas no canto junto da porta, e por fim se voltou para a diminuta janela já iluminada, viu os galhos desnudos da acácia curvada diante dela, o teto afundado da casa dos Halics, a chaminé tombada, a fumaça que ela exalava, e disse: “Vou pegar a minha parte e vou embora hoje de noite mesmo!… O mais tardar amanhã. Amanhã de manhã”. “Ai, meu Deus!”, exclamou a seu lado a sra. Schmidt […]
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Copyright © 1985 by László Krasznahorkai
Ed. Companhia da Letras, 2022
Título original: Sátántangó
Capa: Guilherme Xavier
Imagem de capa: Mulher e Monstro, década de 1960, xilogravura impressa sobre papel de Manuel Messias dos Santos, 28 × 30,5 cm. Reprodução de Jaime Acioly.)
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