Mário de Andrade (sentado), Anita Malfatti (sentada, de roupa escura) e amigos em 1922. (Foto arq. Mario de Andrade do Instituo de Estudos Brasileiros-USP ) |
Havia a reunião das terças, à noite, na Rua Lopes Chaves. Primeira em data, essa reunião semanal continha exclusivamente artistas e precedeu mesmo a Semana de Arte Moderna. Sob o ponto-de-vista intelectual foi o mais útil dos salões, si é que se podia chamar salão àquilo. Às vezes doze, até quinze artistas, se reuniam no estúdio acanhado onde se comia doces tradicionais brasileiros e se bebia um alcoolzinho econômico. A arte moderna era assunto obrigatório e o intelectualismo tão intransigente e desumano que chegou mesmo a ser proibido falar mal da vida alheia! As discussões alcançavam transes agudos, o calor era tamanho que um ou outro sentava nas janelas (não havia assento pra todos) e assim mais elevado dominava pela altura, já que não dominava pela voz nem o argumento. E aquele raro retardatário da alvorada parava defronte, na esperança de alguma briga por gozar.
Havia o salão da Avenida Higienópolis que era o mais selecionado. Tinha por pretexto o almoço dominical, maravilha de comida luso-brasileira. Ainda aí a conversa era estritamente intelectual, mas variava mais e se alargava. Paulo Prado com o seu pessimismo fecundo e o seu realismo, convertia sempre o assunto das livres elucubrações artísticas aos problemas da realidade brasileira. Foi o salão que durou mais tempo e se dissolveu de maneira bem malestarenta. O seu chefe, tornando-se, por sucessão, o patriarca da família Prado, a casa foi invadida, mesmo aos domingos, por um público da alta que não podia compartilhar do rojão dos nossos assuntos. E a conversa se manchava de pôquer, casos de sociedade, corridas de cavalo, dinheiro. Os intelectuais, vencidos, foram se arretirando.
E houve o salão da Rua Duque de Caxias, que foi o maior, o mais verdadeiramente salão. As reuniões semanais eram à tarde, também às terças-feiras. E isso foi a causa das reuniões noturnas do mesmo dia irem esmorecendo na Rua Lopes Chaves. A sociedade da Rua Duque de Caxias era mais numerosa e variegada. Só em certas festas especiais, no salão moderno, construído nos jardins do solar e decorado por Lasar Segall, o grupo se tornava mais coeso. Também aí o culto da tradição era firme, dentro do maior modernismo. A cozinha, de cunho afro-brasileiro, aparecia em almoços e jantares perfeitíssimos de composição. E conto entre as minhas maiores venturas admirar essa mulher excepcional que foi Dona Olívia Guedes Penteado. A sua discrição, o tato e a autoridade prodigiosos com que ela, soube dirigir, manter, corrigir essa multidão heterogênea que se chegava a ela, atraída pelo seu prestígio, artistas, políticos, ricaços, cabotinos, foi incomparável. O seu salão, que também durou vários anos, teve como elemento principal de dissolução a efervescência que estava preparando 1930. A fundação do Partido Democrático, o ânimo político eruptivo que se apoderara de muitos intelectuais, sacudindo-os para os extremismos de direita ou esquerda, baixara um mal-estar sobre as reuniões. Os democráticos foram se afastando. Por outro lado, o integralismo encontrava algumas simpatias entre as pessoas da roda: e ainda estava muito sem vício, muito desinteressado, pra aceitar acomodações. Sem nenhuma publicidade, mas com firmeza, Dona Olivia Guedes Penteado soube terminar aos poucos o seu salão modernista.
O último em data desses salões paulistas foi o da Alameda Barão de Piracicaba, congregado em torno da pintora Tarsila. Não tinha dia fixo, mas as festas eram quase semanais. Durou pouco. E não teve jamais o encanto das reuniões que fazíamos antes, quatro ou cinco artistas, no antigo ateliê da admirável pintora. Isto foi pouco depois da Semana, quando fixada na compreensão da burguesia, a existência de uma onda revolucionária, ela principiou nos castigando com a perda de alguns empregos. Alguns estávamos quase literalmente sem trabalho. Então íamos para o ateliê da pintora, brincar de arte, dias inteiros. Mas dos três salões aristocráticos, Tarsila conseguiu dar ao dela uma significação de maior independência, de comodidade. Nos outros dois, por maior que fosse o liberalismo dos que os dirigiam, havia tal imponência de riqueza e tradição no ambiente, que não era possível nunca evitar um tal ou qual constrangimento. No de Tarsila jamais sentimos isso. O mais gostoso dos nossos salões aristocráticos.
Mário de Andrade. O movimento Modernista. in Aspectos da literatura brasileira. São Paulo, Livraria Martins Editora, 1978.
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