segunda-feira, 18 de maio de 2015

Katherine Mansfield — Felicidade (Conto completo)

Felicidade



(Bliss)




Embora Bertha Young já tivesse trinta anos, ainda havia momentos como aquele em que ela queria correr, ao invés de caminhar, executar passos de dança descendo e subindo a calçada, rolar um aro, atirar alguma coisa para cima e apanhá-la novamente, ou ficar quieta e rir de nada: rir, simplesmente.

O que pode alguém fazer quando tem trinta anos e, virando a esquina de repente, é tomado por um sentimento de absoluta felicidade – felicidade absoluta! – como se tivesse engolido um brilhante pedaço daquele sol da tardinha e ele estivesse queimando o peito, irradiando um pequeno chuveiro de chispas para dentro de cada partícula do corpo, para cada ponta de dedo?

Não há meio de expressar isso sem parecer “bêbado e desvairado”? Ah! Como a civilização é idiota! Para que termos um corpo, se somos obrigados a mantê-lo encerrado em uma caixa, como se fosse um violino raro, muito raro?

“Não, isso de violino não é exatamente o que eu quero dizer” – ela pensou, correndo escadas acima e apalpando a bolsa, em busca da chave – que ela esquecera, como sempre – e sacudindo a caixa do correio. “Não é o que eu quero dizer, pois – ‘obrigada, Mary”’ – ela entrou no vestíbulo. “A babá voltou?”

“Sim, senhora.”

“E as frutas?”

“Sim, senhora. Veio tudo.”

“Traga as frutas para a sala de jantar. Vou dar um arranjo nelas antes de subir.”

Estava escuro e muito frio na sala de jantar. Mesmo assim, Bertha tirou o casaco; não podia tolerar por mais tempo o aperto da roupa, e o ar frio penetrou em seus braços.

Dentro do peito, no entanto, havia ainda aquele ponto brilhante, incandescente, de onde saía uma chuva de pequenas fagulhas. Era quase insuportável. Ela mal tinha coragem de respirar, por medo de atiçar aquele fogo ainda mais; contudo, respirava fundo... Fundo. Quase não tinha coragem de olhar-se no espelho frio; mas olhou, e ele mostrou-lhe uma mulher radiante, com lábios trêmulos, sorridentes, grandes olhos escuros e um ar de quem está à espera de que alguma coisa... Divina aconteça. Ela sabia que iria acontecer infalivelmente.

Mary trouxe as frutas em uma bandeja, e também uma tigela de louça e uma travessa azul, muito linda, com um brilho estranho, como se estivesse mergulhada em leite.

“Quer que eu acenda a luz, senhora?”

“Não, obrigada. Ainda posso ver bastante bem.”

Havia tangerinas, laranjas e maçãs, misturadas com o vermelho dos morangos. Algumas pêras amarelas, lisas como seda, uvas brancas, cobertas por uma florescência prateada, e um grande cacho de uvas roxas. Estas últimas, ela havia comprado para combinar com o tapete novo da sala de jantar. Sim, aquilo parecia bastante afetado e absurdo, mas era realmente a razão pela qual ela as tinha comprado. Na loja, havia pensado: “Preciso de algumas frutas cor de púrpura para aproximar o tapete da mesa.” E na ocasião isto pareceu fazer muito sentido.

Terminado o arranjo, duas pirâmides de forma arredondada, ela se colocou a certa distância, para ver o efeito – e estava realmente muito curioso, pois a mesa escura parecia dissolver-se na luz fosca e tanto a tigela de louça como a travessa azul pareciam flutuar no ar. Isso, é claro, naquele estado de espírito que ela se encontrava, era tão incrivelmente belo... Ela começou a rir.

“Não, não. Estou ficando histérica.” Pegou sua bolsa e seu casaco e subiu correndo para o quarto da filha.

A babá estava sentada ao lado de uma mesa baixa dando o jantar da pequena B., depois do banho. A criança vestia uma camisola de flanela branca e um casaquinho azul, de lã. Os cabelos finos e escuros estavam escovados formando um topetinho engraçado. Ela olhou para cima e começou a pular quando viu a mãe.

“Agora, meu benzinho, coma direito, como uma boa menina”, disse a babá, torcendo a boca num jeito bem conhecido dela, como a dizer que ela havia chegado em hora inoportuna, mais uma vez.

“Ela tem estado bem, Nanny?”

“Ela se comportou muito bem durante toda à tarde”, murmurou Nanny. “Fomos ao parque; eu me sentei em uma cadeira e tirei-a do carrinho. Um cachorro enorme veio até nós, e pôs a cabeça sobre meus joelhos. Ela agarrou a orelha dele, e puxou. Ah! a senhora devia ter visto.”

Bertha teve vontade de perguntar se não seria perigoso deixar que a criança puxasse a orelha de um cão desconhecido, mas não se atreveu. Permaneceu observando-as, os braços largados ao longo do corpo, qual uma menina pobre frente à menina rica com sua boneca.

O bebê olhou para ela outra vez; fixou os olhos nela, sorriu com tanto encanto, que ela não se conteve.

“Ah! Nanny, deixe que eu termine de dar o jantar dela, enquanto você arruma o banheiro.”

“Bem, madame. Ela não devia mudar de mãos enquanto come” – disse Nanny, ainda murmurando. “Isso a perturba, e muito. É muito provável que ela vá ficar agitada.”

Que absurdo! Para que ter uma criança, se ela deve ser guardada – não em uma caixa, como um violino raro, mas nos braços de uma outra mulher?

“Não, é assim que eu quero!”

Muito ofendida, Nanny entregou a criança.

“Bem, não a excite depois da comida. A senhora sabe que a excita, madame. E depois ela me dá um trabalho!”

Graças a Deus! Nanny saiu do quarto, levando as toalhas de banho.

“Agora eu a peguei para mim, minha coisinha preciosa.” – disse Bertha, enquanto o bebê se inclinava para ela.

A criança comeu fazendo festa, abrindo a boca para receber a colher e depois agitando as mãos. Às vezes prendia a colher na boca e outras, logo que Bertha enchia a colher, lançava a comida aos quatro ventos.

Terminada a refeição, Bertha virou-se para a lareira.

“Você é linda, muito linda!” disse, beijando seu bebê. “Sou louca por você.”

E, realmente, ela a amava tanto! – Seu pescoço, quando ela o inclinava para a frente, os artelhos delicados, quase transparentes à luz do fogo... Todo aquele sentimento de felicidade voltou e, ainda uma vez, Bertha não sabia como expressar essa sensação, nem o que fazer com ela.

“Telefone para a senhora” – disse Nanny, voltando em triunfo e pegando a sua criança.

Bertha desceu correndo. Era Harry.

“Ah, é você, Ber? Olhe, vou chegar tarde. Tomarei um táxi e irei tão depressa quanto puder; mas sirva o jantar dez minutos mais tarde, sim? Tudo bem?”

“Sim, perfeitamente. Ah, Harry!”

“Sim?”

O que tinha ela para dizer? Nada. Queria apenas prolongar aquele contato. Não podia só gritar absurdamente: “O dia hoje foi tão maravilhoso!”.

“O que é?” – tornou a voz de longe.

“Nada. Entendu” – disse Bertha, colocando o fone no lugar e pensando o quanto a civilização é idiota.



Eles tinham convidados para o jantar: os Norman Knights, um casal muito distinto – ele estava abrindo um teatro e ela tinha muito entusiasmo por decoração de interiores; um jovem, Eddie Warren, que acabava de publicar um pequeno livro de poemas e a quem todo mundo vinha convidando para jantar, e um “achado” de Bertha, uma moça chamada Pearl Fulton. O que ela fazia, Bertha ignorava. Haviam-se encontrado no clube e Bertha se apaixonara por ela; isso sempre acontecia quando ela encontrava mulheres bonitas que revelassem algo incomum em sua personalidade.

O que a intrigava era que, embora tivessem estado juntas frequentemente e conversado muito, Bertha não podia ainda ter um conceito formado sobre Pearl Fulton. Até certo ponto, ela era de uma franqueza rara e maravilhosa, mas além desse ponto ela não passava.

E haveria alguma coisa além disso? Harry dizia que não. Julgava-a um tanto maçante e “fria como todas as louras, com um toque, talvez, de anemia cerebral”. Mas Bertha não concordava com isso; pelo menos, ainda não.

“Não, sua maneira de sentar-se, com a cabeça levemente inclinada para o lado, sorridente, esconde alguma coisa, Harry, e eu hei de descobrir que coisa é essa.”

“O mais provável é que seja estômago pesado”, disse Harry.

Ele se empenhava em pegar Bertha pelo pé com respostas daquele teor... “Fígado gelado, minha querida”, ou “pura flatulência”, ou “doença dos rins”... E assim por diante. Por alguma estranha razão, Bertha gostava disso e quase o admirava por falar desse modo.

Ela entrou na sala de estar e acendeu a lareira; depois pegou as almofadas que Mary havia arrumado com todo cuidado e atirou-as de volta aos sofás e cadeiras. Foi o bastante para dar vida à sala. No momento de atirar a última almofada, ela se surpreendeu apertando-a contra si apaixonadamente. Mas isso não apagou o fogo em seu peito. Ah, pelo contrário!

As janelas da sala abriam-se para um balcão, e davam para um jardim. No fundo, perto do muro, havia uma esguia pereira, toda florida, esplêndida, que permanecia imóvel contra o céu verde-jade. Bertha não podia deixar de sentir, mesmo a essa distância, que não havia um só botão por abrir, nem uma pétala murcha. Embaixo, nos canteiros do jardim, as tulipas vermelhas e amarelas, carregadas de flores, pareciam inclinar-se na penumbra. Um gato cinzento, arrastando-se de barriga, esgueirava-se através do gramado, e um gato preto, como se fora sua sombra, ia logo atrás. Ela tremeu, curiosamente, ao vê-los tão atentos e rápidos.

“Gato é um bicho horrível!” – ela pensou, e, saindo da janela, começou a andar de um lado para outro. Como era forte o perfume dos junquilhos dentro da sala quente! Forte demais? Não, não demais. E então, como que vencida, ela atirou-se sobre um sofá e cobriu os olhos com as mãos.

“Estou muito feliz, muito feliz” – murmurou.

E parecia-lhe ver por entre as pálpebras a linda pereira, com aquela abundância de flores, como símbolo de sua própria vida.

Realmente – realmente – ela tinha tudo. Era jovem, Harry e ela se amavam como nunca, davam-se muito bem e eram realmente bons companheiros. Ela tinha um adorável bebê. Não precisavam se preocupar com dinheiro. Tinham esta casa e este jardim, que eram absolutamente satisfatórios. E amigos modernos, interessantes; amigos escritores, pintores e poetas ou pessoas voltadas para as questões sociais, justo a espécie de amigos que eles queriam. Além disso, havia os livros, havia a música, e ela encontrara aquela costureirinha maravilhosa, sua cozinheira nova fazia omeletes deliciosos, e eles iam fazer uma viagem ao exterior, no verão.

“Estou ficando maluca! Maluca!” Ela sentou-se, mas sentiu-se inteiramente atordoada, inteiramente bêbada. Devia ser a primavera.

Sim, era a primavera. Agora, ela sentia-se tão cansada que mal poderia subir a escada, para vestir-se.



Um vestido branco, um fio de contas de jade, sapatos verdes e meias. Era coincidência. Ela havia decidido esse arranjo horas antes de ter estado à janela da sala.

As dobras de sua saia produziram um suave farfalhar ao deslizar rente ao chão, quando ela foi à porta de entrada e beijou a senhora Norman Knight, que estava tirando o mais estranho casaco cor de laranja, com uma fileira de macacos pretos em volta da barra, subindo na parte da frente.

“Por quê? Por quê?! Por que a classe média é tão tola, tão completamente desprovida de senso de humor?! É por pura sorte que estou aqui, minha querida, e Norman é meu anjo protetor. Meus queridos macacos chocaram tanto as pessoas do trem que elas simplesmente se puseram a me devorar com os olhos. Não riram, não estavam achando graça, o que eu teria gostado. Apenas olharam-me fixamente e me fuzilaram com os olhos.”

“Mas o melhor de tudo” – disse Norman, apertando contra o olho o monóculo de aro de tartaruga – “você não se importa que eu conte, Face, se importa?” (Na intimidade eles se chamavam Face e Mug.) “O melhor de tudo foi quando ela, furiosa, virou-se para a mulher que estava ao seu lado e disse: A senhora nunca viu um macaco antes?’”

“Ah, sim” – a senhora Norman Knight juntou-se aos que riam. “Não foi mesmo genial?”

E, mais engraçado ainda era que agora, sem o agasalho, ela parecia um macaco muito inteligente, cujo vestido de seda amarela fora feito com cascas de bananas. E os brincos de âmbar pareciam duas nozes bamboleantes.

“It is a sad, sad fall!” – disse Mug, parando em frente ao carrinho do bebê. “When the perambulator comes into the hall” – e ele deixou de lado o resto da citação.

A campainha tocou. Era o esbelto e pálido Eddie Warren, em estado de completa desgraça, como sempre.

“É esta casa mesmo, não é?” – perguntou ele.

“Bem, acho que sim. Pelo menos assim o espero” – disse Bertha, com animação.

“Acabo de ter uma experiência muito desagradável com um motorista de táxi. Ele era terrivelmente sinistro. Não pude conseguir que ele parasse. Quanto mais eu lhe chamava a atenção e lhe pedia que parasse, mais depressa ele ia. E à luz do luar aquela figura bizarra, com a cabeça achatada, debruçando-se sobre o minúsculo volante...”

Ele estremeceu, tirando um imenso cachecol de seda branca. Bertha notou que ele usava meias também brancas, muito vistosas.

“Mas, que coisa horrível!” disse ela em voz muito alta.

“Sim, foi mesmo” – disse Eddie, seguindo-a até a sala de estar. – “Eu me vi decolando para a eternidade num táxi alado.”

Ele conhecia os Norman Knigth. Na verdade ia escrever uma peça para Norman Knigth, quando o esquema do teatro começasse a funcionar.

“Bem, Warren, como está a peça?” – perguntou Norman Knigth, deixando cair o monóculo e dando, assim, oportunidade ao olho de vir à tona, antes de ser ocultado outra vez.

A Sra. Knigth interveio: “Mas que meias lindas, Sr. Warren!”

“Que bom que a senhora tenha gostado delas”, disse ele, olhando para os pés. “Parece que elas ficaram muito mais brancas desde que a lua apareceu.” Virou para Bertha o rosto magro e triste. “Há uma lua, a senhora sabe?”

Ela teve vontade de gritar: “É claro que sei! Muitas vezes, frequentemente!”

Ele era, na verdade, uma pessoa muito atraente. Mas atraentes eram também Face, agachada em frente ao fogo, no seu vestido de cascas de bananas, e Mug, fumando um cigarro e dizendo, enquanto batia as cinzas: “Por que o noivo está demorando tanto?”

“Ei-lo que chega!”

A porta da frente abriu e fechou com estrondo. Harry gritou: “Alo, pessoal. Volto em cinco minutos!” Subiu correndo a escada. Bertha não pôde deixar de sorrir; ela sabia como ele gostava de agir sempre sob alta pressão. Afinal, que importância teriam cinco minutos a mais? Mas ele sustentava para si mesmo que cinco minutos tinham, sim, muita importância. E fazia questão, depois, de chegar e ficar na sala numa postura serena, tranquila.

Harry tinha um tal gosto pela vida... Ah, como ela apreciava isso nele! E sua paixão pela luta, por encontrar em cada coisa que se lhe opunha um outro teste para seu poder e sua coragem, também isso ela compreendia. Mesmo quando, vez por outra, ele pudesse parecer talvez um tanto ridículo, aos olhos dos que não o conheciam bem... Pois às vezes ele se atirava em batalhas que não existiam... Ela conversava e ria, realmente esquecida, até a chegada dele à sala (tal como ela imaginara), de que Pearl Fulton não viera ainda.

“Será que a Pearl esqueceu?”

“Espero que sim”, disse Harry. “Ela tem telefone?”

“Está chegando um táxi.” E Bertha sorriu, com aquele divertido ar de posse que sempre assumia quando suas descobertas femininas eram novas e misteriosas. “Ela vive em táxis.”

“Assim vai engordar” – disse Harry com frieza, tocando a campainha para que o jantar fosse servido. “Um perigo assustador para mulheres louras.”

“Harry, não diga isso” – advertiu Bertha, rindo.

Veio outro breve momento, enquanto esperavam rindo e conversando, só um pouquinho à vontade demais, um pouquinho descontraídos demais. Aí chegou Pearl Fulton, toda prateada, com uma tira de prata prendendo seus cabelos loiros, sorrindo, com a cabeça pendendo um pouco para o lado.

“Estou atrasada?”

“Não, absolutamente” – disse Bertha, pegando-a pelo braço. “Venha comigo.” E entraram na sala de jantar.

O que havia naquele braço frio, que podia avivar – começar a atiçar – atiçar – o fogo da felicidade com o qual Bertha não sabia o que fazer?

Pearl Fulton não olhava para ela; quase nunca olhava as pessoas diretamente. Suas pálpebras pesadas estavam sempre semicerradas, e em seus lábios um estranho sorriso ia e vinha, como se ela, em vez de ver, preferisse ouvir. Mas Bertha soube, de repente, como se o mais longo, o mais íntimo olhar tivesse sido trocado entre elas, como se tivessem dito uma à outra “Você também?”, que Pearl, ao mexer a bela sopa vermelha em seu prato cinza, sentia exatamente o que ela estava sentindo.

E os outros? Face e Mug, Eddie e Harry, suas colheres subindo e descendo, tocando os lábios com os guardanapos, fazendo bolotas com miolo de pão, brincando com garfos e copos, conversavam.

“Eu a encontrei no show do Alpha –uma figurinha muito esquisita. Ela havia não apenas cortado rente os cabelos, mas também parecia ter tirado um bom pedaço dos braços e das pernas, do pescoço e do pobre narizinho também.”

“Ela não é muito liée a Michael Ost?”

“O homem que escreveu Love in False Teeth?”

“Ele quer escrever uma peça para mim. Um ato. Um homem. Ele decide suicidar-se; discute todas as razões pró e contra. E exatamente quando chega a uma conclusão sobre o que fazer... cai o pano. Uma ideia nada má.”

“Como ele vai chamá-la? Dor de estômago?” “Acho que encontrei a mesma ideia numa revistinha francesa inteiramente desconhecida na Inglaterra.”

Não, eles não compartilhavam. Mas eram queridos – queridos – e ela gostava muito de tê-los ali, em sua mesa, oferecendo-lhes comida e vinho deliciosos. Na verdade, ela desejava dizer-lhes o quanto eles eram encantadores e que grupo decorativo formavam; como eles pareciam avivar uns aos outros e como eles lhe faziam lembrar uma peça de Tchekov!

Harry estava gostando do jantar. Era próprio dele – bem, não sua natureza, exatamente, e não, certamente, uma pose – bem, um pouco de cada coisa – falar sobre comida e alardear sua paixão “impudica por carne branca de lagosta e o verde dos sorvetes de pistache, verdes e frios como pálpebras de bailarinas egípcias”.

Quando ele levantou os olhos para ela e disse: “Bertha, este soufflé está maravilhoso!”, ela quase poderia ter chorado, com prazer infantil.

Ah! O que fazia com que ela se sentisse tão terna com todo mundo, hoje? Tudo era bom, tudo estava certo. Tudo o que acontecia parecia encher de novo até a borda sua taça de felicidade.

E havia ainda, no fundo de sua mente, a pereira. Ela estaria prateada, agora, sob a luz da lua do pobre Eddie, prateada como Pearl Fulton, que lá estava, sentada, fazendo girar uma tangerina com seus dedos finos e tão pálidos que um raio de luz parecia sair deles.

O que, na verdade, não podia compreender, o que era miraculoso, era como percebera o estado de espírito de Pearl Fulton de modo tão rápido e exato. Porque ela não tinha a menor dúvida de estar certa e, no entanto, em que podia se basear? Menos que nada.

“Acho que isso acontece muito, muito raramente entre mulheres. Nunca entre homens”, pensou Bertha. “Mas enquanto eu estiver fazendo o café, talvez ela me ‘dê um sinal’, da sala de jantar.”

O que queria dizer com isto ela não sabia, e o que viria a acontecer ela não podia imaginar.

Enquanto pensava, ela se via conversando e rindo. A vontade de rir fazia-a conversar.

“Eu preciso rir ou morrer.”

Mas, ao notar o hábito engraçado que tinha Face de empurrar alguma coisa pelo decote abaixo – como se ela tivesse ali uma reserva de nozes ou algo assim – teve de fechar as mãos com tanta força a ponto de enterrar as unhas nas palmas das mãos, para não rir demais.

Tinham acabado, por fim. “Venham ver minha máquina de fazer café”, disse Bertha.

“Só a cada quinze dias temos uma nova máquina de fazer café nesta casa”, disse Harry. Desta vez Face pegou Bertha pelo braço; Pearl Fulton inclinou a cabeça e seguiu-as.

O fogo tinha-se reduzido na sala, para tornar-se em um crepitante e rubro “ninho de filhotes de Fênix”, segundo Face.

“Não acendam as luzes, por enquanto. Está tão agradável!” Ela agachou-se perto do fogo. Sempre tinha frio... “quando está sem sua jaqueta de flanela vermelha de mico de realejo, é claro”, pensou Bertha.

Naquele momento Pearl Fulton “deu o sinal”.

“Vocês têm um jardim?” disse a tranquila voz sonolenta.

Foi tão refinado da parte dela que tudo o que Bertha pôde fazer foi obedecer; atravessou a sala, afastou as cortinas e abriu aquelas longas janelas.

“Lá”, suspirou.

E as duas mulheres permaneceram de pé, uma ao lado da outra, olhando para a esguia árvore florida. Embora o ambiente estivesse tão tranquilo, a pereira parecia a chama de uma vela a alongar-se, apontar para o alto, tremer no ar brilhante, tornando-se cada vez mais alta enquanto elas olhavam, até quase tocar os bordos prateados da lua redonda.

Quanto tempo elas ficaram ali? Ambas como que presas àquele círculo de luz sobrenatural, compreendendo-se perfeitamente uma à outra, criaturas de um outro mundo, e perguntando-se o que iriam fazer neste mundo com todo aquele alegre tesouro de felicidade que queimava em seus peitos e caía, como flores de prata, de seus cabelos e mãos?

Para sempre? Por um momento? E Pearl Fulton pareceu ter murmurado: “Sim, isso mesmo.” Ou Bertha sonhara isto?

Então a luz foi acesa, Face fazia o café e Harry dizia: “Minha querida Senhora Norman Knigth, não me pergunte pela minha filha. Eu jamais a vejo. Não terei por ela o menor interesse até o dia em que tenha um amante”, e Mug tirou o monóculo, e tornou a colocá-lo, e Eddie Warren tomou seu café e colocou a xícara no lugar com um rosto angustiado, como se ele tivesse engolido uma aranha e percebido o que fizera.

“O que eu quero é dar lugar aos outros jovens. Acho que Londres está fervilhando com excelentes peças ainda não escritas. Quero lhes dizer: Aqui está o teatro; vão em frente!’”

“Sabe, querida? Vou decorar uma sala para os Jacob Nathan. Estou muito tentada a fazer um projeto tipo peixe-frito, com o encosto das cadeiras em forma de frigideiras e lindas batatas fritas espalhadas por toda parte nas cortinas.”

“A dificuldade com nossos autores jovens é que eles são ainda demasiadamente românticos. Ninguém deve se lançar ao mar contando que não vai enjoar e dispensando uma bacia. Bem, por que não terão eles a coragem de usar essas bacias?”

“Um poema chocante sobre uma menina que foi violentada por um mendigo sem nariz, num pequeno bosque.”

Pearl Fulton sentou-se à vontade na poltrona mais baixa e mais funda, e Harry ofereceu cigarros a todos. Pela maneira como ele se pôs à frente dela, sacudindo a caixa de prata dizendo asperamente “Egípcio? Turco? Virginiano? Estão todos misturados”, Bertha constatou que ela não apenas o aborrecia; ele realmente não gostava dela. E deduziu, pelo modo com que Pearl disse “Obrigada, não vou fumar”, que ela também o sentira, e se magoara.

“Não tenha essa antipatia por Pearl, Harry! Você está redondamente enganado a respeito dela. Ela é maravilhosa, maravilhosa! Além disso, como você pode pensar de modo tão diferente de mim, sobre alguém que significa tanto para mim? Tentarei contar-lhe mais tarde, quando estivermos na cama, o que está acontecendo. O que eu e ela estamos compartilhando.”

A essas últimas palavras, alguma coisa estranha e quase aterrorizante penetrou na mente de Bertha. E essa coisa cega e sorridente sussurou-lhe: “Logo essas pessoas irão embora. A casa ficará tranquila, tranquila. As luzes serão apagadas. E você e ele ficarão a sós um com o outro, no quarto escuro, a cama quente...”

Ela saltou da cadeira e correu para o piano.

“Que pena que ninguém toque!” –bradou. “Que pena que ninguém toque!”

Pela primeira vez na vida Bertha Young desejou seu marido.

Ah! Ela o amava! Ela o amara sempre, é claro, mas com outras formas de amor, não com o que sentia agora. E também, é claro, ela havia compreendido que ele era diferente. Haviam discutido isto inúmeras vezes. Ela havia se afligido horrivelmente, a princípio, ao descobrir sua própria frigidez, mas, com o passar do tempo, isso deixara de incomodá-la. Havia tanta franqueza entre os dois, eles eram tão bons companheiros! Nisso estava a grande vantagem de serem modernos.

Mas agora – era com desejo! Com tesão! A palavra doía em seu corpo em brasa. Era a isto que o seu sentimento de felicidade tinha levado? Mas então, então...

“Querida” – disse a Sra. Knight –, “é uma pena, mas você sabe que somos vítimas do tempo e do horário do trem. Moramos em Hampstead. Foi uma noite tão agradável!”

“Vou acompanhá-los até a porta”, disse Bertha. “Foi um prazer tê-los conosco, mas vocês não podem perder o último trem. É tão desagradável isto, não é mesmo?”

“Antes de adir, você aceita um uísque, Knight?” convidou Harry.

‘’Não, obrigado, amigo velho.”

Aquelas palavras, Bertha despediu-se dele com um forte aperto de mão.

“Boa-noite, até outra vez!” gritou ela do alto da escada, sentindo como se uma parte de si estivesse se despedindo deles para sempre.

Ao chegar à sala, encontrou os demais convidados preparando-se para sair.

“Então, você pode fazer parte do trajeto em meu táxi...”

“Eu lhe agradeço muitíssimo por não ter outra vez de enfrentar sozinho uma corrida de táxi depois da terrível experiência da vinda até aqui.”

“Vocês podem tomar um táxi logo no fim da rua, há um ponto lá. Não terão de andar mais que uns poucos metros.”

“É mesmo? Que bom! Vou vestir meu casaco.”

Pearl Fulton encaminhou-se para o vestíbulo e Bertha a ia seguindo, quando Harry quase puxou-a para trás.

“Permita-me ajudá-la.”

Bertha viu que ele tinha se arrependido de sua rudeza e deixou-o à vontade. Em certas coisas ele era um menino – tão impulsivo – tão simples.

Ela e Eddie foram deixados perto da lareira.

“Você já viu o novo poema de Bilke ‘Mesa de Convidado’?” perguntou Eddie, baixo. “É tão maravilhoso! Na última Antologia. Você tem um exemplar? Gostaria muito de mostrá-lo a você. Começa por uma belíssima linha: ‘Por que deve ser sempre sopa de tomate?’”

“Sim”, disse Bertha. Em silêncio, encaminhou-se para uma mesa, no lado oposto à porta, e Eddie acompanhou-a, também silencioso. Ela pegou o livro e entregou-o ao amigo; não tinham feito o menor ruído.

Enquanto ele o folheava, ela levantou a cabeça, olhando para o vestíbulo. E viu... Harry com o agasalho de Pearl Fulton nos braços e esta, de costas para ele, com a cabeça inclinada. Ele atirou o casaco para um lado, colocou as mãos nos ombros dela, e virou-a com violência para si. Seus lábios diziam: “eu te adoro”, e Pearl pousou os dedos finos sobre o rosto dele e sorriu aquele seu sorriso sonolento. As narinas de Harry tremiam; os lábios ficaram repuxados para trás, numa crispação horrível, enquanto ele sussurrava: “amanhã” – e, piscando os olhos, Pearl disse: “sim.”

“Aqui está”, disse Eddie. “por que deve ser sempre sopa de tomate?’ É uma verdade tão profunda, não acha? Sopa de tomate é tão incrivelmente eterna!”

“Se você preferir”, dizia a voz de Harry, bem alto, no vestíbulo, “posso chamar um táxi pelo telefone.”

“Não é necessário”, disse Pearl Fulton e, chegando até Bertha, estendeu-lhe os dedos delicados.

“Até logo. Muito obrigada.”

“Até logo”, disse Bertha.

Pearl conservou os dedos da amiga entre os seus por um momento.

“Como é linda, a sua pereira”, disse ela, baixinho.

E se foi, seguida por Eddie, como o gato preto acompanhando o gato cinzento.

“Vou fechar a casa,” disse Harry, estranhamente tranquilo e contido.

“Sua linda pereira...”

Bertha correu para as janelas largas do jardim.

“Deus! O que vai acontecer agora?”

Mas a pereira estava tão linda como sempre, tão imóvel e florida como sempre.


***
Bliss é um conto de Katherine Mansfield, publicado pela primeira vez em agosto de 1918 na revista English Review.


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