sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Aquilo que eu sou - Erik Satie

AQUILO QUE EU SOU

Toda a gente vos dirá que não sou músico. E é verdade.

Desde o início da minha carreira me classifiquei entre os fonometrógrafos. Os meus trabalhos são pura fonométrica. Agarre-se no Filho das Estrelas ou nos Trechos em Forma de Pera, no Com Fato de Cavalo ou nas Sarabandas, e descobrir-se-á que nenhuma ideia musical presidiu à criação de tais obras. O que lá domina é o pensamento científico.

De resto, mais prazer sinto a medir um som do que a ouvi-lo. De fonómetro em punho, trabalho com alegria & segurança.

O que não terei já pesado e medido? Todo o Beethoven, todo o Verdi, etc. É muito curioso.

Da primeira vez que me servi de um fonoscópio, examinei um si bemol de tamanho médio. Nunca deparei, posso garantir-vos, com uma coisa mais repugnante. Até chamei o criado para ele ver.

Com o fono-pesador um fá sustenido vulgar, como tantos há, atingiu os 93 quilogramas. Saía de um muito gordo tenor que também pesei.

E sabeis, por acaso, o que é limpar os sons? É uma coisa muito porca. Fiá-los é mais limpo. E quanto a sabê-los classificar, exige minúcia e boa vista; está-se em plena fonotécnica.

No que respeita às explosões sonoras tantas vezes desagradáveis, o algodão metido nos ouvidos consegue só por si atenuá-las razoavelmente. Está-se em plena pirofonia.

Para escrever as Peças Frias, servi-me de um caleidofone-gravador. Demorei sete minutos. E até chamei o criado para as ouvir.

Julgo poder afirmar que a fonologia é superior à música. É mais variada. E dá maior rendimento pecuniário. Devo-lhe a minha fortuna.

Seja como for, é mais fácil um fonometrista mediocremente treinado registar no motodinamofone um maior número de sons, do que o mais hábil músico em tempo idêntico e com idêntico esforço. Por isso mesmo eu tanto escrevi.

O futuro pertence, pois, à filofonia.


Erik Satie, Memória de um Amnésico, págs. 34-35, Hiena Editora, Lisboa, 1992.

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