segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Libelo Contra a Arte Moderna (final) — Salvador Dalí

Libelo Contra a Arte Moderna (final) — Salvador Dalí


Uma jota [canção popular] aragonesa tem por refrão estridente este grito visceral, ibérico e irracional:"Eu te amo como se ama a mãe, como se ama o dinheiro!"

O que mais me agrada em todo o pensamento de Augusto Comte é o momento preciso em que, antes de fundar sua nova religião positivista, ele coloca, no topo de sua hierarquia, os banqueiros, aos quais atribui uma importância capital. Talvez esteja ai o lado fenício do meu sangue ampurdan [cantão da Catalunha], mas sempre fui fascinado pelo ouro sob qualquer forma que se apresente. Desde a adolescência, tendo aprendido que Miguel de Cervantes, após ter escrito para a maior glória da Espanha seu imortal Dom Quixote, morreu na maior miséria, e que Cristóvão Colombo, após ter descoberto o Novo Mundo, morreu nas mesmas condições e além do mais na prisão, desde a adolescência, eu dizia, minha prudencia me aconselhou fortemente duas coisas:

1) fazer minha prisão o mais cedo possível. E isso foi feito.
2) tomar-me tanto quanto possível levemente multimilionário. E isso também foi feito.

A maneira mais simples de recusar toda concessão ao ouro é tê-lo a gente mesma. Com ouro, torna-se inteiramente inútil "engajar-se". Um herói não se engaja em parte alguma! Ele e o contrario do domestico. É preciso realmente ter os dentes cobertos de Sartre* para não ousar falar assim! Portanto, sejamos prudentes, como recomenda Saint-Granier, se quisermos nos permitir ser nietzschianos. Todos os valores concretos da pintura moderna serão sempre traduzíveis, no plano material, nesta coisa que eu pessoalmente sempre amei: o dinheiro!

Em troca, que se tranquilizem os críticos puros que sempre desprezaram o dinheiro e tiveram medo de sujar-se tocando-o: os valores abstratos que eles defendem na pintura moderna se converterão inelutavelmente em dinheiro inteiramente limpo, totalmente inofensivo e imaterial. Será o dinheiro puramente abstrato.

[*Dalí visa provavelmente aqui um trocadilho com o nome do
filósofo francês, associado a "tartre", o tártaro dentário.]

FIM
S. S. AMERICA
A CAMINHO DE LE HAVRE, ABRIL DE 1956

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