segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

Sátiro, o el poder de las palabras. Vicente Huidobro #Resenha

Sátiro, o el poder de las palabras. Vicente Huidobro
Sátiro o El poder de las palabras, publicada por primera vez en 1939 y luego de 73 años puesta entre los lectores de la obra huidobriana con esta segunda edición, se trata de un texto narrativo con un lenguaje vivo signado por la experiencialidad de la palabra, en donde cada pagina refleja el poder creativo del autor. No sólo en poesía se expresa el creacionismo de Huidobro, también nos deleita aquí en esta novela poética que ubica a la palabra y sus posibilidades de semantización como centro de las reflexiones de su protagonista, Bernardo Saguen. Como siempre el poder creativo de Huidobro nos atrapa para deslizarnos luego en ese tejido de palabras únicas enunciadas por la voz de un poeta dedicado a revolucionar todo cuanto se escribe.

Jean Cocteau & Tristan Tzara. por Man Ray #Foto #Escritores

Jean Cocteau & Tristan Tzara. Foto: Man Ray

domingo, 2 de dezembro de 2018

Kitchen. Banana Yoshimoto #Cozinha #Citação


Kitchen, Banana Yoshimoto
Creo que la cocina es el lugar del mundo que más me gusta. En la cocina, no importa de quién ni cómo sea, o en cualquier sitio donde se haga comida, no sufro. Si es posible, prefiero que sea funcional y que esté muy usada. Con los trapos secos y limpios, y los azulejos blancos y brillantes.
Incluso las cocinas sucísimas me encantan.
Aunque haya restos de verduras esparcidos por el suelo y esté tan sucio que la suela de las zapatillas quede ennegrecida, si la cocina es muy grande, me gusta. Si allí se yergue una nevera enorme, llena de comida como para pasar un invierno, me gusta apoyarme en su puerta plateada. Cuando levanto los ojos de la cocina de gas grasienta y del cuchillo oxidado, en la ventana brillan estrellas solitarias.
Sólo estamos la cocina y yo. Pero creo que es mejor que pensar que en este mundo estoy yo sola.
Cuando estoy agotada suelo quedarme absorta. Cuando llegue el momento, quiero morir en la cocina. Sola en un lugar frío, o junto a alguien en un lugar cálido, me gustaría ver claramente mi muerte sin sentir miedo. Creo que me gustaría que fuese en la cocina.

Kitchen - Banana Yoshimoto (1988)

Octavio Paz e Luis Buñuel #Foto #Escritores

Octavio Paz e Luis Buñuel

terça-feira, 12 de junho de 2018

Emma. Jane Austen. #Citação #capa


Emma WOODHOUSE, bela, inteligente e rica, com uma família acomodada e um bom caráter, parecia reunir em sua pessoa os melhores dons da existência; e tinha vivido perto de vinte e um anos sem que quase nada a afligisse ou a zangasse.

Era a menor das duas filhas de um pai muito carinhoso e indulgente e, como conseqüência das bodas de sua irmã, desde muito jovem tinha tido que fazer de ama de casa. Fazia já muito tempo que sua mãe tinha morrido para que ela conservasse algo mais que uma confusa lembrança de suas carícias, e tinha ocupado seu lugar uma institutriz, mulher de grande coração, que se tinha feito querer quase como uma mãe.

A senhorita Taylor tinha estado dezesseis anos com a família do senhor Woodhouse, mais como amiga que como institutriz, e muito afeiçoada com as duas filhas, mas sobre tudo com a Emma. A intimidade que havia entre elas era mais de irmãs que de outra coisa. Até antes de que a senhorita Taylor cessasse em suas funções nominais de institutriz, a brandura de seu caráter poucas vezes lhe permitia impor uma proibição; e então, que fazia já tempo que tinha desaparecido a sombra de sua autoridade, tinham seguido vivendo juntas como amigas, muito unidas a uma à outra, e Emma fazendo sempre o que queria; tendo em grande estima o critério da senhorita Taylor, mas regendo-se fundamentalmente pelo seu próprio.

O certo era que os verdadeiros perigos da situação da Emma eram, de uma parte, que em tudo podia fazer sua vontade, e de outra, que era propensa a ter uma idéia muito boa de si mesmo; estas eram as desvantagens que ameaçavam mesclar-se com suas muitas qualidades. Entretanto, no momento o perigo era tão imperceptível que em modo algum podiam considerar-se como inconvenientes deles.

Chegou a contrariedade -uma pequena contrariedade-, sem que isso a turvasse absolutamente de um modo muito visível: a senhorita Taylor se casou.
***

Erich Mª Remarque. #Photo #Cita

Erich Mª Remarque

Para el soldado, su estómago y su digestión son un campo mucho más familiar que para cualquier otro hombre. Las tres cuartas partes de su léxico provienen de aquí, y la expresión de su alegría, al igual que la de su más colérica indignación, encuentran en estas palabras su fuerza descriptiva. Es imposible, de otra forma, expresarse más clara y rotundamente. Nuestras familias y nuestros profesores se escandalizarán cuando volvamos, pero aquí es el idioma universal.
*
Sin Novedad En El Frente, Erich Mª Remarque

Patricia Highsmith. Photo

Patricia Highsmith

sexta-feira, 25 de maio de 2018

Aquilo que eu gostaria de ser se não fosse o que sou - César Bruto

"Sempre que o tempo fresco chega, ou seja, em meados do outono, dá-me na veneta ter idéias do tipo excêntrico e exótico, como, por exemplo, desejar me tornar andorinha para voar para os países onde haja calor, ou ser formiga para me meter bem dentro de um buraco e comer os produtos guardados durante o verão, ou ser uma víbora como as do zoológico, que estão bem guardadas numa jaula de vidro com aquecimento para não ficarem duras de frio, que é o que acontece aos pobres seres humanos que não podem comprar roupa com o preço que custa, nem podem aquecer-se por falta de querosene, falta de carvão, falta de lenha, falta de petróleo e, também, a falta de prata, porque quando se anda cheio de grana pode-se entrar em qualquer taverna e virar uma boa aguardente, e é preciso ver como aquece, embora não convenha abusar, porque é do abuso que vem o vício e é do vício que vem a degenerescência, tanto do corpo como das taras morais de cada qual, e quando se descamba pelo declive fatal da falta de boa conduta em todos os sentidos, já nada nem ninguém o salva de acabar no mais espantoso caixote de lixo do desprestígio humano, e nunca lhe darão uma mão para tirá-lo lá de dentro, do lixo imundo no qual se contorce, nem mais nem menos do que se fosse um condor, que quando jovem soube correr e voar pelo pico das altas montanhas, mas que ao ficar velho caiu a pique como bombardeiro por lhe ter falhado o motor moral. E oxalá aquilo que estou escrevendo sirva a alguém, para que olhe bem o seu comportamento e não se arrependa quando for tarde e tudo já tiver ido por água abaixo por culpa sua!"

CÉSAR BRUTO,
Aquilo que eu gostaria de ser se não fosse o que sou
(capítulo: Cachorro são-bernardo).

quarta-feira, 14 de março de 2018

domingo, 11 de março de 2018

Los cirujanos tienen que ser muy prudentes - Emily Dickinson

¡Los cirujanos tienen que ser muy prudentes
al tomar el cuchillo!
Debajo de sus finas incisiones
palpita el culpable – ¡la vida!

***

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

A Teoria - Jonathan Culler

A Teoria

A impossibilidade de dominar a teoria é uma causa importante de resistência a ela. Não importa quão bem versado você possa pensar ser, não pode jamais ter certeza se "tem de ler" ou não Jean Baudrillard, Mikhail Bakhtin, Walter Benjamin, Hélene Cixous, C.L.R. James, Melanie Klein ou Julia Kristeva, ou se pode ou não esquecê-los com segurança. (Dependerá, naturalmente, de quem "você" é e quem quer ser). Grande parte da hostilidade à teoria, sem dúvida, vem do fato de que admitir a importância da teoria é assumir um compromisso aberto, deixar a si mesmo numa posição em que há sempre coisas importantes que você não sabe. Mas essa é uma condição da própria vida.


Jonathan Culler - Teoria Literária, 1999.

Mais vasto que um formigueiro - Stendhal (Citação)

Mais Vasto que um formigueiro

Um caçador dispara um tiro de espingarda numa floresta, a sua presa cai, ele corre para a agarrar. O seu calçado bate num formigueiro de dois pés de altura, destrói a habitação das formigas, atira-as para longe, bem como aos seus ovos... As mais filósofas das formigas não poderão nunca compreender esse corpo negro, imenso, horrível... a bota do caçador que de repente penetrou na morada delas com uma incrível rapidez, e precedida de um ruído pavoroso, acompanhado de centelhas de um fogo avermelhado...
Assim a morte, a vida, a eternidade... São coisas muito simples para quem tem uma alma suficientemente vasta para as conceber...


Stendhal

O Vermelho e o Negro

quinta-feira, 10 de agosto de 2017

As Formigas e a Cigarra - Fábula de Ambrose Bierce

Desenho de Batarda Fernandes


AS FORMIGAS E A CIGARRA



Estavam uns tantos Membros duma Assembleia Legislativa a inventariar, no fim de uma sessão, as respectivas fortunas, quando lhes apareceu um Honesto Mineiro a pedir que partilhassem com ele.

— Porque é que o senhor não adquiriu os bens que, por direito, lhe pertencem? — Perguntaram-lhe os Membros da Assembleia Legislativa.

— Porque — respondeu o Honesto Mineiro — estava tão ocupado a extrair ouro que não tive tempo para juntar coisa que se visse.

Os Membros da Assembleia Legislativa puseram-se a rir dele, dizendo:

— Se o senhor perde tempo com tão fúteis distrações, não esteja agora à espera de ter parte na remuneração por um trabalho assíduo.


***
Ambrose Bierce, Fábulas Fantásticas, 1899.

segunda-feira, 10 de julho de 2017

Quando a estrutura falha, a rima tenta vir em socorro - W. C. Williams

Quando a estrutura falha,
a rima tenta vir em socorro

O cavalo velho morre devagar.
Gradativamente
o fervor de suas veias
compara-se ao estiramento

das folhas, dia a dia. Mas
o passo que sua
mente mantém, é o passo
dos seus sonhos. Ele

faz o que pode, com
inabalável fleugma,
olá! mas o passo que
sua carne mantém —

inclinada, inclinada sobre
barras — mendiga
praticamente todo o passo e todos
os refúgios de seus sonhos.

William Carlos Williams
(Tradução: Jorge Wanderley)

quinta-feira, 22 de junho de 2017

Quanto? — Poema de Carl Sandburg

QUANTO?

— Quanto me amas? Um milhão de alqueires?
— Oh, muito mais que isso, oh, muito mais.

— E amanhã? Talvez meio alqueire?
— Amanhã talvez nem isso.

É esta, então, a aritmética do teu coração?
— Não; é o modo como o vento mede o tempo.

Carl Sandburg

terça-feira, 2 de maio de 2017

Belchior Implodiu - poema de Herman Schmitz



BELCHIOR IMPLODIU

Belchior era apenas um rapaz Latino Americano
que subiu nos palcos, ganhou muito 
mas deixou os shows por medo de avião

Se entregou ao belo prazer de viver
Aventuras muitas, dívidas maiores
De pronto, sua voz não soava tão bem

Uma paixão pela pintura compensava
e a loucura elucubrativa e filosófica
lhe trouxe mecenas e financiadores

Adeus lucro fácil dublando a si mesmo
porque não ser o poeta de tempo integral?

Desceu os degraus ilusórios da fama
com o seu ego em busca de um fim natural
e deste modo raro, conseguiu ser a pessoa
que, renunciando em ser, mais além foi!

2017@HermanSchmitz

terça-feira, 28 de março de 2017

A Porta Aberta - Conto de SAKI


A PORTA ABERTA
SAKI
(Hector Hugh Munro -1870 1916)




— Minha tia já vai descer, sr. Nuttel — disse uma jovem dama de 15 anos, muito segura de si. — Enquanto isso, o senhor terá de me aturar.

Framton Nuttel procurava dizer algo apropriado que lisonjeasse devidamente a sobrinha no momento sem indevidamente menosprezar a tia de logo mais. De si para si duvidava, mais do que nunca, que visitas de cortesia, como essa, a uma série de pessoas estranhas, beneficiassem muito o tratamento de nervos a que pretendiam submetê-lo.

— Já sei como vai ser a coisa — dissera-lhe a irmã quando ele preparava sua retirada para aquele recanto de província. — Você vai-se enterrar ali sem falar a vivalma, e vai-se aborrecer tanto que os seus nervos ficarão piores do que nunca. Pelo sim, pelo não dou-lhe umas cartas de recomendação para todas as pessoas do lugar minhas conhecidas. Algumas delas, ao que me lembro, são bem agradáveis.

Framton perguntava a si mesmo, agora, se a sra. Sappleton, a quem vinha apresentar uma daquelas cartas, pertencia ao grupo agradável.

— O senhor conhece muita gente aqui? — perguntou a sobrinha quando julgou que já tinham tido entre si bastante silêncio.

— Quase ninguém — respondeu Framton. — Minha irmã passou aqui algum tempo na reitoria, há uns quatro anos, e deu-me cartas de apresentação para várias pessoas daqui.

Estas últimas palavras foram pronunciadas em tom de manifesto pesar.

— Então o senhor não sabe praticamente nada a respeito de minha tia? — perguntou a jovem dama, segura de si.

— Nada, a não ser o nome e o endereço — reconheceu o visitante.

Nem sabia se a sra. Sappleton era casada ou viúva. Um não sei quê indeterminável parecia sugerir a existência de homens na casa.

— Pois a grande tragédia dela ocorreu há três anos — declarou a menina —, quer dizer, após a visita da irmã do senhor.

— Tragédia? — perguntou Framton.

Naquele cantinho tranquilo de província parecia não haver lugar para tragédias.

— O senhor poderia perguntar por que deixamos esta porta-janela aberta numa tarde de outubro — disse ela, indicando uma larga porta que dava sobre um relvado.

— Está muito quente para a estação — observou Framton —, mas será que essa porta tem algo que ver com o drama?

— Foi por ela que, há três anos menos um dia, o marido de minha tia e seus dois jovens irmãos saíram para a caça. Nunca voltaram. Ao atravessarem o brejo para chegar ao seu lugar favorito, onde costumavam caçar narcejas, os três foram tragados por um pântano traiçoeiro. Naquele ano o verão tinha sido muito úmido, o senhor sabe, e trechos seguros do caminho em outros anos cediam de repente sem dizer água-vai. E — o que há de mais horrível — os corpos nunca foram encontrados.

Aqui a voz da menina perdeu o tom firme e tornou-se hesitante, humana:

— A pobrezinha da titia sempre pensa que eles um dia voltarão, eles e o pequeno sabujo castanho que com eles se perdeu, e vão entrar pela porta, como habitualmente faziam. É por isso que a deixam aberta todas as tardes, até o cair do crepúsculo. Pobre titia! Mais de uma vez me contou como eles foram embora, seu marido com o impermeável branco sobre o braço, e Ronnie, seu irmão mais moço, cantando “Bertie, por que estás pulando?”, com que habitualmente a agastava, porque ele dizia que aquilo a irritava muito. Sabe? Às vezes, em noites tranquilas, silenciosas como esta, eu tenho uma espécie de calafrio: parece-me que os vejo todos entrar por aquela porta.

Interrompeu-se, com um leve tremor. Foi para Framton verdadeiro alívio quando a tia irrompeu no salão multiplicando desculpas por não haver aparecido antes.

— Espero que Vera o tenha divertido — disse.

— A conversa dela tem sido muito interessante — declarou Framton.

— Espero que a porta aberta não o esteja incomodando — disse a sra. Sappleton com vivacidade. — Meu marido e meus irmãos vão chegar da caçada, e eles sempre entram por aqui. Hoje foram caçar narcejas no paul, e vão sujar completamente os meus pobres tapetes. São coisas de homem, não é?

Continuou a tagarelar sobre a casa e a escassez de aves e as perspectivas de haver patos no inverno. Para Framton tudo aquilo era simplesmente horrível. Fez um esforço desesperado, mas só em parte bem-sucedido, a fim de encaminhar a conversa a outro assunto menos horroroso; sentia que a dona da casa só lhe consagrava parte de sua atenção, pois seus olhares iam, sem parar, em direção à porta aberta e ao relvado. Fora, na verdade, uma coincidência infeliz que o trouxera àquela casa precisamente naquele aniversário trágico.

— Os médicos são unânimes em me aconselhar repouso absoluto, abstenção de qualquer excitação mental e de qualquer exercício físico de certa violência — anunciou Framton, que sofria da ilusão, muito espalhada, de que pessoas de todo estranhas a nós, ou conhecidas por acaso, ficam ávidas de conhecer até os mínimos pormenores de nossas doenças e enfermidades, de sua causa e seu tratamento. — Eles só não estão de acordo quanto ao regime — acrescentou.

— Não? — perguntou a sra. Sappleton num tom que ainda em tempo substituiu um bocejo.

Depois, de repente, seu rosto se aclarou num ar de atenção, mas não àquilo que Framton dizia.

— Afinal chegaram! — exclamou. — Justo à hora do chá. Mas não vê que estão cheios de lama até os olhos?

Framton estremeceu de leve e voltou-se para a sobrinha com um olhar destinado a comunicar-lhe uma compreensiva solidariedade. A mocinha estava com os olhos fixos na porta, cheios de horror e estupefação. Num frio choque de medo inominável, Framton virou-se na sua poltrona e olhou para a mesma direção.

No crepúsculo cada vez mais escuro três vultos atravessavam o relvado em direitura à porta; os três sobraçavam espingardas, e um deles tinha também uma capa branca, pendente de um dos ombros. Um sabujo castanho, cansado, seguia-lhe as pegadas. Sem barulho chegaram à casa, até que uma voz moça e rouca se pôs a cantar no lusco-fusco: — “Bertie, por que estás pulando?”

Framton agarrou compulsivamente a bengala e o chapéu; a porta do vestíbulo, o passeio de cascalho e o portão da frente foram as etapas confusamente notadas de sua precipitada fuga. Um ciclista que vinha pela estrada teve de se encostar à cerca para evitar uma colisão.

— Chegamos, querida — disse o da capa branca entrando pela porta. — Estamos cheios de lama, mas quase toda seca. Mas quem foi que fugiu daqui à nossa chegada?

— Um homem esquisitíssimo, um certo sr. Nuttel — disse a sra. Sappleton. — Só sabia falar das próprias doenças, e sumiu sem uma palavra de adeus ou de desculpa quando vocês entraram. Dir-se-ia que viu um fantasma.

— Parece-me que foi o sabujo — disse calmamente a sobrinha. — Ele me contou que tinha horror a tudo quanto é cachorro. Certa vez foi perseguido, num cemitério lá nas margens do Ganges, por uma matilha de cães párias, e teve de passar a noite numa cova recém-aberta, com os bichos a rosnar, a espumar, a arreganhar os dentes para ele. O bastante para a gente ficar com os nervos abalados.

Ela estava-se especializando em improvisar histórias.


***

A bibliografia de Saki comporta alguns volumes de contos: Reginaldo; Reginaldo na Rússia; As crônicas de Clóvis; Bichos e superbichos (1914); um romance: O insuportável Bassington; uma sátira política: Alice em Westminster; e um único “livro sério”: A ascensão do império russo.

“Unindo a agudo senso do ridículo o talento da sátira mordaz e até amarga”,45 encontrou Saki na alta sociedade inglesa matéria abundante para os seus contos. Os passatempos frívolos dessa classe — o jogo, a caça, o turfe, as reuniões sociais — eram alvos preferidos do escritor, que os ridicularizava sem poder esconder de todo a ternura que aquele ambiente, o seu, apesar de tudo lhe inspirava. 

(Aurélio Buarque de Holanda Ferreira e Paulo Rónai - Mar de Histórias, vol. 9).


sexta-feira, 24 de março de 2017

Lucrécio, Poeta - conto de Marcel Schwob


Marcel Schwob

LUCRÉCIO, POETA



Lucrécio veio ao mundo numa grande família que se retirara da vida social. Seus primeiros dias receberam a sombra do negro pórtico de uma casa alta erguida na montanha. O átrio era severo; os escravos, mudos. Desde cedo o adolescente se viu cercado pelo desprezo da política e dos homens. O nobre Mêmio, que tinha a mesma idade, participou, na floresta, dos jogos que Lucrécio lhe impusera. Juntos, os dois admiraram as rugas das velhas árvores, e espiaram o tremor das folhas ao sol, como um víride véu de luz juncado de manchas de ouro. Muitas vezes contemplaram as costas listradas dos porcos selvagens que fossavam o solo. Atravessaram cachos frementes de abelhas e bandos de formigas em marcha. E certo dia, ao saírem de uma mata de corte, chegaram a uma clareira rodeada de antigos sobros, assentados tão estreitamente que o círculo deles escavava no céu um poço de azul. A paz desse asilo era infinita. Dir-se-ia uma longa estrada clara que ia para o alto do divino ar. Aí foi que Lucrécio teve, num relance, a bênção dos espaços calmos.

Em companhia de Mêmio, deixou o templo sereno da floresta para estudar eloquência em Roma. O antigo fidalgo que governava o solar deu-lhe um professor grego e determinou que só voltasse quando possuísse a arte de desprezar as ações humanas. Lucrécio não tornou a vê-lo: morreu solitário, execrando o tumulto da sociedade. Ao regressar, o jovem trazia para o átrio severo e para o meio dos mudos escravos do solar vazio uma africana linda, bárbara e má. Mêmio regressara à casa dos pais. Lucrécio tinha visto as facções sanguinárias, as guerras dos partidos e a corrupção política. Estava apaixonado.

E, a princípio, a sua vida foi enfeitiçada. Contra as tapeçarias das paredes a africana apoiava as onduladas massas da sua cabeleira. Todo o seu corpo desposara longamente os repousos do leito. Com os braços carregados de esmeraldas translúcidas cingia as ânforas cheias de vinhos espumantes. Tinha um modo estranho de levantar o dedo e de sacudir a testa. Seus sorrisos provinham de uma fonte misteriosa e funda como os rios da África. Em vez de fiar a lã, lacerava-a paciente em farfalhas que lhe esvoaçavam em redor.

Lucrécio desejava ardentemente fundir-se naquele belo corpo. Apertava-lhe os seios metálicos e colava os lábios àqueles lábios de um roxo sombrio. As palavras de amor passaram de um para o outro, foram suspiradas, fizeram-nos rir, e gastaram-se. Os dois tocaram no véu flexível e opaco que separa os amantes. A sua volúpia cresceu em furor e desejou mudar de pessoa. Chegou ao extremo agudo em que se expande à volta da carne, sem penetrar nas entranhas. A africana enroscou-se-lhe dentro do coração selvagem. Lucrécio desesperou-se por não poder realizar o amor. A mulher tornou-se altiva, sombria e silenciosa, tal qual o átrio e os escravos. Lucrécio errou pela sala dos livros.

Foi então que desdobrou o rolo onde um escriba copiara o tratado de Epicuro.

Imediatamente compreendeu ele a variedade das coisas deste mundo e a inutilidade de aspirar às ideias. O Universo pareceu-lhe semelhante às farfalhas de lã que os dedos da africana espalhavam pelas salas. Os cachos de abelhas e as colunas de formigas e o tecido móbil das folhas foram para ele agrupamentos de átomos, e em todo o corpo sentiu um povo invisível e discorde, ávido de separar-se. E os olhares pareceram-lhe raios, mais sutilmente carnudos, e a imagem da linda bárbara, um mosaico agradável e colorido, e teve a sensação de que o fim do movimento dessa infinidade era triste e vão. Assim como às facções ensanguentadas de Roma, com suas tropas de clientes armados e insultadores, contemplou o torvelinho de rebanhos de átomos tintos do mesmo sangue e que disputam entre si uma obscura supremacia. E viu que a dissolução da morte era apenas a emancipação dessa turba turbulenta que se atira a mil outros movimentos inúteis.

Ora, mal recebeu Lucrécio essa instrução do rolo de papiro onde as palavras gregas se achavam entretecidas, como os átomos do mundo, saiu à floresta pelo negro pórtico da casa solarenga dos antepassados. E avistou o dorso dos porcos listrados que tinham o focinho sempre dirigido para a terra. Depois, atravessando a mata de corte, súbito se encontrou no meio do templo sereno da floresta, e seus olhos penetraram no poço azul do céu. Foi ali que fixou o seu descanso.

Dali contemplou a imensidade formigante do Universo: todas as pedras, todas as plantas, todas as árvores, todos os animais, todos os homens com as suas cores, as suas paixões, os seus instrumentos, e a história dessas coisas diversas, e seu nascimento, e suas doenças, e sua morte. E, no meio da morte total e necessária, percebeu claro a morte única da africana, e chorou.

Sabia que as lágrimas vêm de um movimento particular das glandulazinhas dispostas sob as pálpebras e agitadas por uma procissão de átomos saídos do coração, quando o próprio coração sofreu o choque duma sucessão de imagens coloridas que se desprendem da superfície do corpo da amada. Sabia que o amor não é devido senão a uma intumescência de átomos desejosos de se juntar a outros átomos. Sabia que a tristeza causada pela morte não passa da pior das ilusões terrestres, pois a morta cessara de ser infeliz e de sofrer, enquanto aquele que a chorava se afligia com os seus próprios males e sonhava tenebrosamente com a própria morte. Sabia que de nós não resta nenhum simulacro duplo para verter lágrimas sobre o próprio cadáver estendido a nossos pés. Mas, conhecendo exatamente a tristeza e o amor e a morte, e sabendo que estes são imagens vãs quando as contemplamos do espaço calmo a que nos devemos recolher, continuou a chorar, a desejar o amor e a temer a morte.

Eis por que, de regresso à casa alta e sombria dos antepassados, se aproximou da bela africana, que estava preparando uma beberagem numa panela de metal em cima de um braseiro. De fato, ela por sua vez também sonhara, e seus pensamentos remontaram à fonte misteriosa do seu sorriso. Lucrécio contemplou a beberagem ainda fervente, que aos poucos foi clareando e se tornou semelhante a um céu verde e turvo. E a bela africana sacudiu a cabeça e levantou o dedo. Então Lucrécio bebeu o filtro. E imediatamente a razão lhe fugiu, e ele esqueceu todas as palavras gregas do rolo de papiro. E pela primeira vez conheceu o amor, sendo louco; e durante a noite, tendo sido envenenado, conheceu a morte.

***

Mayer André Marcel Schwob, known as Marcel Schwob (23 August 1867 – 26 February 1905), was a Jewish French symbolist writer best known for his short stories and his literary influence on authors such as Jorge Luis Borges and Roberto Bolaño. He has been called a "surrealist precursor". In addition to over a hundred short stories, he wrote journalistic articles, essays, biographies, literary reviews and analysis, translations and plays. He was extremely well known and respected during his life and notably befriended a great numbers of intellectuals and artists of the time. Wikipedia: Marcel_Schwob.

sexta-feira, 3 de março de 2017

Franz Kafka - Sobre os livros


Franz Kafka - Sobre os livros

Deveríamos apenas ler livros que nos mordem e espicaçam. Se a obra que lemos não nos desperta com um golpe de punho sobre o crânio, qual é a vantagem de a ler? Para que nos torne felizes, como afirmas? Meu Deus, seríamos da mesma forma felizes se não tivéssemos livro. E os livros que nos deixam felizes, a rigor, poderíamos escrevê-los nós mesmos. Em contrapartida, precisamos de livros que sobre nós atuem de modo igual a uma desgraça; que nos façam sofrer muito, como a morte de quem amássemos mais do que a nós mesmos, como um suicídio. Um livro deve ser o machado que rompe o mar gelado existente em cada um de nós. 

***

Carta a Oskar Pollak, de 27 de janeiro de 1904. In: NUNES, Danillo. Franz Kafka: vida heroica de um anti-herói. Rio de Janeiro: Edições Bloch, 1974. p. 167-168.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Cozinha #LONDRIX - #Gastronomia #Literatura


Quarta, dia 15/02, às 20 horas no Museu Histórico de Londrina.

MESA "COZINHA LONDRIX"

O chef Marcello Sokolowski , a nutricionista Valéria Arruda Mortara e o escritor Herman Schmitz se reúnem pra botar na mesa as misturas e as influências da literatura e da gastronomia.

Um banquete pra quem ama literatura e comida boa!

terça-feira, 17 de janeiro de 2017

Retratos de Escritores — André Gide

André Gide (1869 - 1951) perto de Ascona, Suíça, 1947.



Escritor Francês, ganhador do prêmio Nobel de literatura em 1947. A obra de Gide está essencialmente consagrada a exploração do EU. Excelente narrador. 

segunda-feira, 2 de janeiro de 2017

Leitores e Livros - Julio Cortázar

Leitores e Livros

A técnica consistia em marcar encontros vagos num bairro a uma certa hora. Eles gostavam de desafiar o perigo de não se encontrarem, de passarem o dia sozinhos, metidos num café ou sentados num banco de praça, lendo-um-livro-a-mais. A teoria do livro-a-mais era de Oliveira, e a Maga aceitara-a por pura osmose. Na realidade, para ela quase todos os livros eram livros-de-menos, a não ser que, de repente, quisesse encher-se de uma imensa sede e durante um tempo infinito (calculável entre três e cinco anos) ler as obras completas de Goethe, Homero, Dylan Thomas, Mauriac, Faulkner, Baudelaire, Roberto Arlt, Santo Agostinho e outros autores cujos nomes a sobressaltavam nos bate-papos do clube. A isso Oliveira respondia sempre com um desdenhoso encolher de ombros, falando das deformações rioplatenses, de uma raça de leitores de tempo integral, de bibliotecas pululantes de sabichões infiéis ao sol e ao amor, de casas onde o cheiro de tinta de imprensa acaba com a alegria do alho. Nesses tempos, lia pouco, muito ocupado em olhar para as árvores, os insetos que encontrava no chão, os filmes amarelados da Cinemateca e as mulheres do bairro latino. As suas vagas tendências intelectuais resolviam-se em meditações sem proveito, e, quando a Maga lhe pedia ajuda, uma data ou uma explicação, ele dava a informação de má vontade, como se fosse algo inútil. "Mas isso é porque você já sabe tudo", dizia a Maga, ressentida. Então, ele se dava o trabalho de indicar a diferença entre conhecer e saber, propondo-lhe exercícios de indagação individual que a Maga não cumpria e que a desesperavam.

*Julio Cortázar, O Jogo da Amarelinha (Rayuela).

sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

Intersecções — Cleber Pacheco (resenha)

*
Intersecções de Cleber Pacheco
Resenha por Herman Schmitz

Li este livro em apenas uma tarde, mesmo tentando me controlar para ler bem devagar, foi impossível. Depois disso ainda continuo folheando aqui e ali, pois sempre há algo para a captar-se. 

O livro é um devir que compactua com o tempo e a vida. É como um sopro da própria vida que se sente respirar de dentro do livro. Cleber Pacheco consegue de forma magistral um equilíbrio de linguagem entre a poética de imagens sutis e elegantes, e do outro lado, a prosa que narra o cotidiano simples e despojado de um casal, que em alguns parágrafos chegam a inquietar com as sugestões implícitas nas palavras efetivamente impressas.

Um dos temas do livro é o desejo. Os personagens fazem muitas listas, que são desejos sob pontos de vista diferentes. Ambos veem as necessidades de manutenção da casa e da vida, de compras de objetos de uso pessoal, de afazeres em geral, de um modo quase antagônico: 

"Poderia comprar um cão para deitar-se ao meu lado enquanto leio o jornal.  
Poderia comprar um gato para deitar-se em meu colo enquanto olho as revistas.
Poderia fazer mais ginástica e corrida para fortalecer os músculos.
Poderia fazer mais passeios para tomar chá com as amigas."

Portanto, o mais impactante no livro está no alcance "para além" dessas descrições breves, pois a maneira como o autor as vai interpolando, adquire um texto de fundo com um sentido maior ao livro, na verdade é mais que um sentido lógico, é um sentimento, uma espécie de paz que só nos ocorre em contato com as obras de arte mais genuínas. 

Sobre o autor
Cleber Pacheco tem Licenciatura Plena em Letras e Especialização em Filosofia: Epistemologia das Ciências Sociais. É mestre em Literatura Brasileira. Publicou livros em diversos gêneros literários: poesia, conto, novela, romance, teatro e crítica literária. Tem publicações em diversos países: Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Índia, Irlanda. Recebeu prêmios em teatro, poesia e crônica. Seu livro "Mysteries" foi premiado nos Estados Unidos. Faz parte do Conselho Editorial do International Journal of English Studies and Literature.

Título: Intersecções
Autor: Cleber Pacheco
Número de páginas: 92
Tamanho: 14cm X 21cm
ISBN: 978-85-5833-108-1
Editora: Penalux

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Antropologia da Arte

Arte - Alfred Gall

O antropólogo britânico Alfred Gell (1945-1997) desenvolve seu conceito de arte como parte de sua proposta de estabelecimento de uma nova antropologia da arte. Responsável por uma rotação de perspectivas nesse domínio, Gell revisa conceitos como obra de arte, artefato, tecnologia da arte, estética, encantamento, magia e estilo, o que resulta em uma complexa teoria sobre a agência do objeto artístico.

No artigo “A tecnologia do encanto e o encanto da tecnologia” (1992), o autor considera as diversas artes como partes de um vasto e frequentemente não reconhecido sistema técnico, que ele denomina “tecnologia do encanto”. Nessa perspectiva, objetos de arte seriam fruto de uma atividade técnica de transubstanciação engenhosa de materiais e das ideias a eles associados. Gell reivindica aí o emprego de um “filisteíismo metodológico”, postura de total indiferença do antropólogo no tocante ao valor estético das obras de arte. Para elucidá-la, utiliza como exemplo objetos de arte criados com a intenção de funcionar como “armas” em uma “guerra psicológica”; é o caso das tábuas que ornam as proas das canoas dos participantes do kula, sistema de trocas realizado pelas populações das ilhas Trobriand. A intenção por trás do uso dessas tábuas é fazer com que os parceiros da troca que estão em outras ilhas, ao observarem as canoas chegando, se deslumbrem a ponto de perderem os sentidos, oferecendo braceletes e colares mais valiosos do que de costume. A eficácia dos objetos de arte como componentes da tecnologia do encanto e o poder de fascinação que exercem são resultantes do encanto da tecnologia empregados em sua construção. Gell prioriza, assim, a análise da eficácia do objeto de arte, seu poder de agência.

No artigo “On Coote's ‘Marvels of everyday vision’” (1995), por sua vez, Gell realiza uma crítica à posição defendida pelo antropólogo britânico Jeremy Coote de que haveria sociedades que, mesmo sem produzir arte, possuiriam um conceito de estética. Coote utiliza como exemplo o conjunto de categorizações de cores, formas e padrões produzidos pelos Dinka do Sudão a partir das manchas e da coloração do gado, e que são projetadas na classificação de tudo aquilo que tange sua visualidade no dia a dia. A objeção de Gell a essas teses, que defendem a existência de uma estética Dinka, se volta ao pressuposto de que obras de arte não devem ser reduzidas a artefatos, podendo também englobar vegetais, seres animados, pinturas corporais e tatuagens, entre outros. A própria forma como os Dinka criam e enfeitam alguns de seus bois, enaltecendo e cultuando suas qualidades e atributos por meio de poemas e canções os convertem, para o autor, em objetos de arte. Para ele, razões estéticas (como a de “beleza”) são indissociáveis de razões práticas (como a de auferir “prestígio”). Em suma, sua crítica à posição de Coote reside em mostrar que não existe uma antropologia da estética que não seja também uma antropologia da arte, ou mais precisamente, uma antropologia dos objetos de arte. Também no ensaio “A rede de Vogel: armadilhas como obras de arte e obras de arte como armadilhas” (1996), Gell advoga o abandono da noção de estética pela antropologia da arte – que almeja desfazer distinções correntes entre obras de arte e “meros” artefatos – analisando a presença de uma rede de caça tradicional Zande em uma exposição de arte contemporânea. Se, ao veicularem significados, as obras de arte encarnam intencionalidades complexas, também os instrumentos, ao evocarem os nexos sociais de sua produção e uso, seriam candidatos potenciais à adjetivação de obras de arte.

Essas teses sobre o objeto artístico, desenvolvidas em uma série de artigos e intervenções do autor em debates acadêmicos, desembocarão no seu mais conhecido (e inacabado) livro sobre o tema, Art and Agency: an Anthropological Theory (1998). Lançada postumamente, a obra contem a proposta de uma metodologia para a antropologia da arte. Gell inova ao afirmar, na contra-corrente, que a arte seria menos um suporte de comunicação de sentidos simbólicos, que um sistema de ação e de mediação de relações sociais. Ao rejeitar definições sociológico-institucionais, estéticas e semióticas do objeto artístico – agora renomeado como “índice” – o autor propõe uma definição teórica, com ênfase nos seus processos de agência, intenção, causação, resultado e transformação.

O conceito de arte que Gell delineia ao longo de sua obra tornou-se uma referência incontornável para os estudos de antropologia da arte, devido às suas críticas aos limites das abordagens estética (oriunda da filosofia), institucional (da sociologia), interpretativa (da própria antropologia) e das aproximações de cunho mais historicista ou formalista (polarizadas entre os campos da história e da crítica de arte). Em diversos contextos etnográficos – que vão desde as terras altas da Papua-Nova Guiné, passando pela Oceania, Sul da Ásia, Índia e chegando até as terras baixas da Amazônia – as formulações de Alfred Gell permitiram que diversos antropólogos, impactados pelas possibilidades teóricas abertas pelo autor, não mais dissociassem a produção e a circulação de objetos de arte de suas propriedades de agência e de sua relação com tópicos de interesse da Antropologia que vão além do campo de estudo da arte.


E A, A enciclopédia
De <http://ea.fflch.usp.br/conceito/arte-alfred-gell>

quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Machado de Assis — Misa de Gallo (Cuento trad.)



Machado de Assis (1839-1908)
Misa de gallo


(Missa do galo
Traducción de Elkin Obregón)



Nunca pude entender la conversación que tuve con una señora hace muchos años; tenía yo diecisiete, ella treinta. Era noche de Navidad. Había acordado con un vecino ir a la misa de gallo y preferí no dormirme; quedamos en que yo lo despertaría a medianoche.

La casa en la que estaba hospedado era la del escribano Meneses, que había estado casado en primeras nupcias con una de mis primas. La segunda mujer, Concepción, y la madre de ésta me acogieron bien cuando llegué de Mangaratiba a Río de Janeiro, unos meses antes, a estudiar preparatoria. Vivía tranquilo en aquella casa soleada de la Rua do Senado con mis libros, unas pocas relaciones, algunos paseos. La familia era pequeña: el notario, la mujer, la suegra y dos esclavas. Eran de viejas costumbres. A las diez de la noche toda la gente se recogía en los cuartos; a las diez y media la casa dormía. Nunca había ido al teatro, y en más de una ocasión, escuchando a Meneses decir que iba, le pedí que me llevase con él. Esas veces la suegra gesticulaba y las esclavas reían a sus espaldas; él no respondía, se vestía, salía y solamente regresaba a la mañana siguiente. Después supe que el teatro era un eufemismo. Meneses tenía amoríos con una señora separada del esposo y dormía fuera de casa una vez por semana. Concepción sufría al principio con la existencia de la concubina, pero al fin se resignó, se acostumbró, y acabó pensando que estaba bien hecho.

¡Qué buena Concepción! La llamaban santa, y hacía justicia al mote porque soportaba muy fácilmente los olvidos del marido. En verdad era de un temperamento moderado, sin extremos, ni lágrimas, ni risas. En el capítulo del que trato, parecía mahometana; bien habría aceptado un harén, con las apariencias guardadas. Dios me perdone si la juzgo mal. Todo en ella era atenuado y pasivo. El propio rostro era mediano, ni bonito ni feo. Era lo que llamamos una persona simpática. No hablaba mal de nadie, perdonaba todo. No sabía odiar; puede ser que ni supiera amar.

Aquella noche el escribano había ido al teatro. Era por los años 1861 o 1862. Yo debería de estar ya en Mangaratiba de vacaciones; pero me había quedado hasta Navidad para ver la misa de gallo en la Corte[1]. La familia se recogió a la hora de costumbre, yo permanecí en la sala del frente, vestido y listo. De ahí pasaría al corredor de la entrada y saldría sin despertar a nadie. Había tres copias de las llaves de la puerta; una la tenía el escribano, yo me llevaría otra y la tercera se quedaba en casa.

—Pero, señor Nogueira, ¿qué hará usted todo este tiempo? —me preguntó la madre de Concepción.

—Leer, doña Ignacia.

Llevaba conmigo una novela, Los tres mosqueteros, en una vieja traducción del Jornal do Comércio. Me senté en la mesa que estaba en el centro de la sala, y a la luz de un quinqué, mientras la casa dormía, subí una vez más al magro caballo de D’Artagnan y me lancé a la aventura. Dentro de poco estaba yo ebrio de Dumas. Los minutos volaban, muy al contrario de lo que acostumbran hacer cuando son de espera; oí que daban las once, apenas, de casualidad. Mientras tanto, un pequeño rumor adentro llegó a despertarme de la lectura. Eran unos pasos en el corredor que iba de la sala al comedor; levanté la cabeza; enseguida vi un bulto asomarse en la puerta, era Concepción.

—¿Todavía no se ha ido? —preguntó.

—No, parece que aún no es medianoche.

—¡Qué paciencia!

Concepción entró en la sala, arrastraba las chinelas. Traía puesta una bata blanca, mal ceñida a la cintura. Era delgada, tenía un aire de visión romántica, como salida de mi novela de aventuras. Cerré el libro; ella fue a sentarse en la silla que quedaba frente a mí, cerca de la otomana. Le pregunté si la había despertado sin querer, haciendo ruido, pero ella respondió enseguida:

—¡No! ¡Cómo cree! Me desperté yo sola.

La encaré y dudé de su respuesta. Sus ojos no eran de alguien que se acabara de dormir; parecían no haber empezado el sueño. Sin embargo, esa observación, que tendría un significado en otro espíritu, yo la deseché de inmediato, sin advertir que precisamente tal vez no durmiese por mi causa y que mintiese para no preocuparme o enfadarme. Ya dije que ella era buena, muy buena.

—Pero la hora ya debe de estar cerca.

—¡Qué paciencia la suya de esperar despierto mientras el vecino duerme! ¡Y esperar solo! ¿No le dan miedo las almas del otro mundo? Observé que se asustaba al verme.

—Cuando escuché pasos, me pareció raro; pero usted apareció enseguida.

—¿Qué estaba leyendo? No me diga, ya sé, es la novela de los mosqueteros.

—Justamente; es muy bonita.

—¿Le gustan las novelas?

—Sí.

—¿Ya leyó La morenita[2]?

—¿Del doctor Macedo? La tengo allá en Mangaratiba.

—A mí me gustan mucho las novelas, pero leo poco, por falta de tiempo. ¿Qué novelas ha leído?

Comencé a nombrar algunas. Concepción me escuchaba con la cabeza recargada en el respaldo, metía los ojos entre los párpados a medio cerrar, sin apartarlos de mí. De vez en cuando se pasaba la lengua por los labios, para humedecerlos. Cuando terminé de hablar no me dijo nada; nos quedamos así algunos segundos. Enseguida vi que enderezaba la cabeza, cruzaba los dedos y se apoyaba sobre ellos mientras los codos descansaban en los brazos de la silla; todo esto lo había hecho sin desviar sus astutos ojos grandes.

«Tal vez esté aburrida», pensé.

Y luego añadí en voz alta:

—Doña Concepción, creo que se va llegando la hora, y yo…

—No, no, todavía es temprano. Acabo de ver el reloj; son las once y media. Hay tiempo. ¿Usted si no duerme de noche es capaz de no dormir de día?

—Lo he hecho.

—Yo no; si no duermo una noche, al otro día no soporto, aunque sea media hora debo dormir. Pero también es que me estoy haciendo vieja.

—Qué vieja ni qué nada, doña Concepción.

Mi expresión fue tan emotiva que la hizo sonreír. Habitualmente sus gestos eran lentos y sus actitudes tranquilas; sin embargo, ahora se levantó rápido, fue al otro lado de la sala y dio unos pasos, entre la ventana de la calle y la puerta del despacho de su marido. Así, con su desaliño honesto, me daba una impresión singular. A pesar de que era delgada, tenía no sé qué cadencia en el andar, como alguien que le cuesta llevar el cuerpo; ese gesto nunca me pareció tan de ella como en aquella noche. Se detenía algunas veces, examinaba una parte de la cortina, o ponía en su lugar algún adorno de la vitrina; al fin se detuvo ante mí, con la mesa de por medio. El círculo de sus ideas era estrecho; volvió a su sorpresa de encontrarme despierto, esperando. Yo le repetí lo que ella ya sabía, es decir, que nunca había oído la misa de gallo en la Corte, y no me la quería perder.

—Es la misma misa de pueblo; todas las misas se parecen.

—Ya lo creo; pero aquí debe haber más lujo y más gente también. Oiga, la Semana Santa en la Corte es más bonita que en los pueblos. Y qué decir de las fiestas de San Juan, y las de San Antonio…

Poco a poco se había inclinado; apoyaba los codos sobre el mármol de la mesa y metía el rostro entre sus manos abiertas. No traía las mangas abotonadas, le caían naturalmente, y le vi la mitad de los brazos, muy claros y menos delgados de lo que se podría suponer. Aunque el espectáculo no era una novedad para mí, tampoco era común; en aquel momento, sin embargo, la impresión que tuve fue fuerte. Sus venas eran tan azules que, a pesar de la poca claridad, podía contarlas desde mi lugar. La presencia de Concepción me despertó aún más que la del libro. Continué diciendo lo que pensaba de las fiestas de pueblo y de ciudad, y de otras cosas que se me ocurrían. Hablaba enmendando los temas, sin saber por qué, variándolos y volviendo a los primeros, y riendo para hacerla sonreír y ver sus dientes que lucían tan blancos, todos iguales. Sus ojos no eran exactamente negros, pero sí oscuros; la nariz, seca y larga, un poquito curva, le daba a su cara un aire interrogativo. Cuando yo subía el tono de voz, ella me reprimía:

—¡Más bajo! Mamá puede despertarse.

Y no salía de aquella posición, que me llenaba de gusto, tan cerca quedaban nuestras caras. Realmente, no era necesario hablar en voz alta para ser escuchado; murmurábamos los dos, yo más que ella, porque hablaba más; ella, a veces, se quedaba seria, muy seria, con la cabeza un poco torcida. Finalmente se cansó; cambió de actitud y de lugar. Dio la vuelta y vino a sentarse a mi lado, en la otomana. Volteé, y pude ver, de reojo, la punta de las chinelas; pero fue sólo el tiempo que a ella le llevó sentarse, la bata era larga y se las tapó enseguida. Recuerdo que eran negras. Concepción dijo bajito:

—Mamá está lejos, pero tiene el sueño muy ligero, si despierta ahora, pobre, se le va a ir el sueño.

—Yo también soy así.

—¿Cómo? —preguntó ella inclinando el cuerpo para escuchar mejor.

Fui a sentarme en la silla que quedaba al lado de la otomana y le repetí la frase. Se rió de la coincidencia, también ella tenía el sueño ligero; éramos tres sueños ligeros.

—Hay ocasiones en que soy igual a mamá; si me despierto me cuesta dormir de nuevo, doy vueltas en la cama a lo tonto, me levanto, enciendo una vela, paseo, vuelvo a acostarme y nada.

—Fue lo que le pasó hoy.

—No, no —me interrumpió ella.

No entendí la negativa; puede ser que ella tampoco la entendiera. Agarró las puntas del cinturón de la bata y se pegó con ellas sobre las rodillas, es decir, la rodilla derecha, porque acababa de cruzar las piernas. Después habló de una historia de sueños y me aseguró que únicamente había tenido una pesadilla, cuando era niña. Quiso saber si yo las tenía. La charla se fue hilvanando así lentamente, largamente, sin que yo me diese cuenta ni de la hora ni de la misa. Cuando acababa una narración o una explicación, ella inventaba otra pregunta u otro tema, y yo tomaba de nuevo la palabra. De vez en cuando me reprimía:

—Más bajo, más bajo.

Había también unas pausas. Dos o tres veces me pareció que dormía, pero sus ojos cerrados por un instante se abrían luego, sin sueño ni fatiga, como si los hubiese cerrado para ver mejor. Una de esas veces, creo, se dio cuenta de lo embebido que estaba yo de su persona, y recuerdo que los volvió a cerrar, no sé si rápido o despacio. Hay impresiones de esa noche que me aparecen truncadas o confusas. Me contradigo, me cuesta trabajo. Una de ésas que todavía tengo frescas es que, de repente, ella, que apenas era simpática, se volvió linda, lindísima. Estaba de pie, con los brazos cruzados; yo, por respeto, quise levantarme; no lo permitió, puso una de sus manos en mi hombro, y me obligó a permanecer sentado. Pensé que iba a decir alguna cosa, pero se estremeció, como si tuviese un escalofrío, me dio la espalda y fue a sentarse en la silla, en donde me encontrara leyendo. Desde allí, lanzó la vista por el espejo que quedaba encima de la otomana, habló de dos grabados que colgaban de la pared.

—Estos cuadros se están haciendo viejos. Ya le pedí a Chiquinho que compremos otros.

Chiquinho era el marido. Los cuadros hablaban del asunto principal de este hombre. Uno representaba a «Cleopatra»; no recuerdo el tema del otro, eran mujeres. Vulgares ambos; en aquel tiempo no me parecieron feos.

—Son bonitos —dije.

—Son bonitos, pero están manchados. Y además, para ser francos, yo preferiría dos imágenes, dos santas. Éstas se ven más apropiadas para cuarto de muchacho o de barbero.

—¿De barbero? Usted no ha ido a ninguna barbería.

—Pero me imagino que los clientes, mientras esperan, hablan de señoritas y de enamoramientos, y naturalmente el dueño de la casa les alegra la vista con figuras bonitas. En casa de familia es que no me parece que sea apropiado. Es lo que pienso; pero yo pienso muchas cosas; así, raras. Sea lo que sea, no me gustan los cuadros. Yo tengo una Nuestra Señora de la Concepción, mi patrona, muy bonita; pero es escultura, no se puede poner en la pared, ni yo quiero, está en mi oratorio.

La idea del oratorio me trajo la de la misa, me recordó que podría ser tarde y quise decirlo. Creo que llegué a abrir la boca, pero luego la cerré para escuchar lo que ella contaba, con dulzura, con gracia, con tal languidez que le provocaba pereza a mi alma y la hacía olvidarse de la misa y de la iglesia. Hablaba de sus devociones de niña y señorita. Después se refería a unas anécdotas, historias de paseos, reminiscencias de Paquetá[3], todo mezclado, casi sin interrupción. Cuando se cansó del pasado, habló del presente, de los asuntos de la casa, de los cuidados de la familia que, desde antes de casarse, le habían dicho que eran muchos, pero no eran nada. No me contó, pero yo sabía que se había casado a los veintisiete años.

Y ahora no se cambiaba de lugar, como al principio, y casi no salía de la misma actitud. No tenía los grandes ojos largos, y empezó a mirar a lo tonto hacia las paredes.

—Necesitamos cambiar el tapiz de la sala —dijo poco después, como si hablara consigo misma.

Estuve de acuerdo para decir alguna cosa, para salir de la especie de sueño magnético, o lo que sea que fuere que me cohibía la lengua y los sentidos. Quería, y no, acabar la charla; hacía un esfuerzo para desviar mis ojos de ella, y los desviaba por un sentimiento de respeto; pero la idea de que pareciera que me estaba aburriendo, cuando no lo era, me llevaba de nuevo los ojos hacia Concepción. La conversación moría. En la calle, el silencio era total.

Llegamos a quedarnos por algún tiempo —no puedo decir cuánto— completamente callados. El rumor, único y escaso, era un roído de ratón en el despacho, que me despertó de aquella especie de somnolencia; quise hablar de ello, pero no encontré la manera. Concepción parecía divagar. Un golpe en la ventana, por fuera, y una voz que gritaba: «¡Misa de gallo!, ¡misa de gallo!».

—Allí está su compañero, qué gracioso; usted quedó de ir a despertarlo, y es él quien viene a despertarlo a usted. Vaya, que ya debe de ser la hora; adiós.

—¿De verdad? —pregunté.

—Claro.

—¡Misa de gallo! —repitieron desde afuera, golpeando.

—Vaya, vaya, no se haga esperar. La culpa ha sido mía. Adiós, hasta mañana.

Y con la misma cadencia del cuerpo, Concepción entró por el corredor adentro, pisaba mansamente. Salí a la calle y encontré al vecino que me esperaba. Nos dirigimos de allí a la iglesia. Durante la misa, la figura de Concepción se interpuso más de una vez entre el sacerdote y yo; que se disculpe esto por mis diecisiete años. A la mañana siguiente, en la comida, hablé de la misa de gallo y de la gente que estaba en la iglesia, sin excitar la curiosidad de Concepción. Durante el día la encontré como siempre, natural, benigna, sin nada que hiciera recordar la charla de la víspera. Para Año Nuevo fui a Mangaratiba. Cuando regresé a Río de Janeiro, en marzo, el escribano había muerto de una apoplejía. Concepción vivía en Engenho Novo, pero no la visité, ni me la encontré. Más tarde escuché que se había casado con el escribiente sucesor de su marido.


***

[1] El autor alude a la ciudad de Río de Janeiro, por esos años capital del Imperio bajo el reinado de don Pedro II. (N. del T.)

[2] A Moreninha (1844), de Joaquim Manuel de Macedo, fue una novela muy popular en el Brasil de esos años. (N. del T.)

[3] Isla distante unas pocas millas de la bahía de Guanabara. Por esos años muy frecuentada como lugar de paseo o verano de la sociedad carioca. (N. del T.)

***

Páginas recogidas (1899)

sábado, 6 de agosto de 2016

Um Louco — Guy de Maupassant (Conto)

UM LOUCO

Guy de Maupassant


Ele morreu como chefe de um tribunal de alta instância, magistrado íntegro cuja vida impecável era citada em todas as cortes da França. Advogados, jovens conselheiros e juízes o cumprimentavam inclinando-se profundamente, em sinal de enorme respeito, diante de sua figura alta, branca e magra, iluminada por dois olhos brilhantes e profundos.

Passara a vida perseguindo o crime e protegendo os fracos. Escroques e assassinos nunca haviam tido inimigo mais temível, pois ele parecia ler, no fundo de suas almas, seus pensamentos secretos, e desvendar, com um passar de olhos, todos os mistérios de suas intenções.

Morreu então, aos 82, cercado de homenagens e acompanhado pelo lamento de todo um povo. Soldados de calças vermelhas o escoltaram até seu túmulo e homens de gravatas brancas lançaram sobre seu caixão palavras tristes e lágrimas que pareciam verdadeiras.

Pois bem, eis o estranho papel que o escrivão, desnorteado, descobriu na escrivaninha onde ele costumava trancar os dossiês dos grandes criminosos.

Seu título era:

POR QUÊ?

20 de junho de 1851 — Saio da sessão. Condeno Blondel à morte! Por que, afinal, havia aquele homem matado seus cinco filhos? Por quê? Muitas vezes encontramos pessoas para quem destruir a vida é uma volúpia. Sim, sim, deve ser uma volúpia, talvez a maior de todas, pois matar não é o que mais se assemelha a criar? Fazer e destruir. Estas duas palavras encerram a história dos universos, toda a história dos mundos, tudo o que existe, tudo! Por que matar é embriagador?

Pensar que ali está um ser que vive, que anda, que corre… Um ser? O que é um ser? Essa coisa animada, que traz em si o princípio do movimento e uma vontade que determina esse movimento! Essa coisa a nada se prende. Seus pés não se unem ao solo. É um grão de vida que se mexe sobre a terra; e este grão de vida, vindo não sei de onde, podemos destruir como quisermos. E então nada, mais nada. Apodrece, acaba.

26 de junho — Por que, então, é crime matar? É, por quê? Pelo contrário, é a lei da natureza. Todo ser tem como missão matar: ele mata para viver e mata por matar.

Matar está em nossa índole; é preciso matar! O animal mata sem parar, o dia todo, a todo instante de sua existência. O homem mata sem parar para se alimentar, mas como tem necessidade de matar também por volúpia, ele inventou a caça! A criança mata os insetos que encontra, os passarinhos, todos os pequenos animais que lhe caem nas mãos. Mas isto não basta à irresistível necessidade de massacre que há em nós. Não é suficiente matar o animal, precisamos também matar o homem. Antigamente, satisfazia-se este desejo com os sacrifícios humanos. Hoje, a necessidade de viver em sociedade fez do assassinato um crime. Condena-se e pune-se o assassino! Mas como não podemos nos entregar a este instinto natural e impiedoso da morte, aliviamo-nos de tempos em tempos por meio de guerras onde todo um povo destrói outro povo. Temos então uma orgia de sangue, uma orgia na qual se precipitam os exércitos e da qual continuam a se embebedar os burgueses, mulheres e crianças que leem, à noite, sob a lamparina, a narrativa exaltada dos massacres.

E poder-se-ia dizer que desprezamos aqueles destinados a realizar essas carnificinas de homens! Não. Nós os cobrimos de honrarias! Nós os vestimos com ouro e tecidos brilhantes, eles usam plumas na cabeça, enfeites sobre o peito, e nós lhes damos cruzes, recompensas, títulos de toda natureza. Eles são orgulhosos, respeitados, amados pelas mulheres, aclamados pela multidão, unicamente porque têm por missão espalhar o sangue humano! Eles arrastam pelas ruas seus instrumentos de morte que o passante vestido de negro olha com inveja. Porque matar é a grande lei lançada pela natureza no coração do ser! Nada há de mais belo e mais honorável do que matar!

30 de junho — Matar é a lei; porque a natureza ama a eterna juventude. Ela parece gritar em todos os seus atos inconscientes: “Depressa! Depressa! Depressa! ” Mais ela destrói, mais se renova.

2 de julho — O ser, o que é o ser? Tudo e nada. Pelo pensamento, ele é o reflexo de tudo. Pela memória e pela ciência, é um resumo do mundo, do qual traz em si a história. Espelho de coisas e espelho de fatos, cada ser humano toma-se um pequeno universo no universo!

Mas viaje, veja fervilharem as raças, e o homem nada mais é! Mais nada, nada! Suba num barco, afaste-se da margem coberta pela multidão e logo nada verá além da costa. O ser imperceptível desaparece, de tão pequeno e insignificante. Atravesse a Europa num trem veloz e olhe pela janela. Homens, homens, sempre homens, inúmeros, desconhecidos, que fervilham nos campos, que fervilham nas ruas; camponeses estúpidos sabendo apenas revirar a terra; mulheres horrendas sabendo apenas fazer a sopa do macho e engravidar. Vá às índias, vá à China, e continuará a ver agitarem-se milhares de seres que nascem, vivem e morrem sem deixar mais traços do que a formiga esmagada nas estradas. Vá ao país dos negros, refugiados em barracos de barro; ao país dos árabes brancos, abrigados sob uma barraca marrom que flutua ao vento, e compreenderá que o ser isolado, determinado, não é nada, nada. A raça é tudo! O que é o ser, o ser qualquer de uma tribo errante do deserto? E essas pessoas, que são sábias, não se inquietam com a morte. O homem não conta para eles. Mata-se seu inimigo: é a guerra. Isto já era feito outrora, de castelo em castelo, de província em província.

Sim, atravesse o mundo e veja fervilharem os humanos incontáveis e desconhecidos. Desconhecidos? Ah! Eis a palavra do problema! Matar é crime porque nós enumeramos os seres. Quando eles nascem, nós os inscrevemos, nomeamos, batizamos. A lei os captura! É claro! O ser que não é registrado não conta; mate-o na campina ou no deserto, mate-o na montanha ou na planície, dá na mesma! A natureza ama a morte; ela não pune!

O que é sagrado, por exemplo, é o estado civil! Claro! É ele quem defende o homem. O homem é sagrado porque está inscrito no estado civil! Respeito ao estado civil, o Deus legal! De joelhos!

O Estado pode matar, porque ele tem o direito de modificar o estado civil. Quando ele faz decapitar 200 mil homens numa guerra, ele os risca em seu estado civil, ele os suprime pela mão de seus escrivães. Está feito. Mas nós, que não podemos alterar as escrituras dos cartórios, nós devemos respeitar a vida. Estado civil, gloriosa Divindade que reinas nos templos das municipalidades, eu te saúdo. És mais forte que a Natureza. Ah! Ah!

3 de julho — Matar deve ser um saboroso e estranho prazer, ter ali, diante de si, o ser vivo, pensante; fazer um pequeno furo, apenas um pequeno furo, ver escorrer esta coisa vermelha que é o sangue, que faz a vida, e só ter diante de si um monte de carne mole, fria, inerte, vazia de pensamento!

5 de agosto — Eu, que passei minha vida julgando, condenando, matando pelas palavras pronunciadas, matando pela guilhotina aqueles que haviam matado pela faca, eu! eu! se eu fizesse como todos os assassinos que atingi, eu! eu! quem saberia?

Quem saberia? Desconfiariam de mim, de mim, sobretudo se escolhesse um ser que não tivesse qualquer interesse em suprimir?

15 de agosto — A tentação! A tentação entrou em mim como um verme que rasteja. Ela rasteja, ela vai; ela passeia por todo o meu corpo, por meu espírito, que só pensa nisto: matar; por meus olhos, que sentem necessidade de olhar para o sangue, de ver morrer; por meus ouvidos, pelos quais passa sem cessar alguma coisa desconhecida, horrível, dilacerante e aterradora, como o último grito de um ser; por minhas pernas, onde treme o desejo de ir, de ir ao local onde a coisa acontecerá; por minhas mãos que se agitam com a necessidade de matar. Como deve ser bom, raro, digno de um homem livre, acima dos outros, senhor de seu coração e que busca sensações refinadas!

22 de agosto — Eu não podia mais resistir. Matei um animalzinho para ensaiar, para começar.

Jean, meu empregado tinha um canário numa gaiola suspensa à janela do escritório. Mandei-o fazer umas compras e peguei o passarinho em minha mão na qual eu sentia bater seu coração. Ele sentia calor. Subi para o meu quarto. De vez em quando, eu o apertava com mais força; seu coração batia mais depressa, era atroz e delicioso. Quase o sufoquei. Mas eu veria o sangue.

Então peguei a tesoura, uma tesourinha de unhas, e cortei-lhe a garganta com três golpes, bem devagar. Ele abria o bico, tentava escapar de mim. Mas eu o segurava, ah!, eu o segurava — eu teria segurado um buldogue — e vi o sangue escorrer. Como é belo, vermelho, reluzente, claro o sangue! Eu tinha vontade de bebê-lo. Molhei nele a ponta de minha língua! É bom. Mas tinha tão pouco sangue esse pobre passarinho! Não tive tempo de gozar daquela visão como gostaria. Deve ser fantástico ver sangrar um touro.

E depois fiz como os assassinos, como os de verdade. Lavei a tesoura, lavei minhas mãos; joguei fora a água e levei o corpo, o cadáver, para o jardim para enterrá-lo. Enfiei-o debaixo de um pé de morango. Nunca o encontrarão. Comerei todos os dias um morango daquele pé. Realmente, como se pode gozar a vida, quando se sabe!

Meu empregado chorou; ele acredita que seu pássaro fugiu. Como suspeitaria de mim? Ah! Ah!

25 de agosto — E preciso que eu mate um homem! É preciso.

30 de agosto — Está feito. Como é pouco!

Eu tinha ido passear no bosque de Vernes. Não pensava, não, em nada. Eis uma criança no caminho, um garotinho que comia um pão com manteiga. Ele pára ao me ver passar e diz:

— Bom dia, seu presidente.

E o pensamento me entra na cabeça: "E se eu o matasse?"

Respondo:

— Está sozinho, meu menino?

— Estou sim, senhor.

— Sozinho no bosque?

— Estou sim, senhor.

A vontade de matá-lo me inebriava como álcool. Aproximei-me devagar, certo de que ele iria fugir. E eis que o pego pela garganta... eu o aperto, aperto-o com toda a minha força! Ele me olhou com olhos de pavor! Que olhos! Redondos, profundos, límpidos, terríveis! Nunca senti uma emoção tão brutal… mas tão curta! Ele segurava meus punhos com suas mãozinhas, e seu corpo se retorcia como uma pluma ao fogo. Então não se mexeu mais.

Meu coração batia, ah! O coração do pássaro! Atirei o corpo no fosso, depois joguei mato por cima.

Voltei para casa, jantei bem. Como é pouco! A noite, eu estava muito alegre, leve, remoçado, estive na casa do prefeito. Acharam-me espiritual.

Mas não vi o sangue! Estou tranquilo.

30 de agosto — Descobriram o cadáver. Procuram o assassino. Ah! Ah!

1º de setembro — Prenderam dois andarilhos. Faltam provas.

2 de setembro — Os pais vieram me ver. Choraram! Ah! Ah!

6 de outubro — Nada descobriram. Algum vagabundo errante teria feito aquilo. Ah! Ah! Se eu tivesse visto o sangue escorrer, acho que estaria tranquilo agora.

10 de outubro — A vontade de matar me corre pelos ossos. É comparável aos males de amor que nos torturam aos 20 anos.

20 de outubro — Mais um. Eu ia pela margem do rio, depois do almoço. E vi, debaixo de um salgueiro, um pescador adormecido. Era meio-dia. Uma pá parecia estar, de propósito, plantada num campo de batatas ali perto.

Eu a apanhei, voltei; ergui-a como uma clava e, de um só golpe, com a lâmina, rachei a cabeça do pescador. Ah! ele sangrou! Um sangue rosado, cheio de miolos! Escorria para a água, bem devagar. E eu parti num passo grave. Se me tivessem visto! Ah! Ah! Eu daria um excelente assassino.

25 de outubro — O caso do pescador provoca um grande tumulto. Acusam seu sobrinho, que pescava com ele.

26 de outubro — O promotor afirma que o sobrinho é culpado. Todos na cidade acreditam nisso. Ah! Ah!

27 de outubro — O sobrinho defende-se bem mal. Tinha ido à aldeia comprar pão e queijo, afirma. Jura que mataram o seu tio durante sua ausência! Quem acreditaria nele?

28 de outubro — O sobrinho quase confessou, de tanto que o fizeram perder a cabeça! Ah! Ah! A justiça!

15 de novembro — Há provas arrasadoras contra o sobrinho, que herdaria os bens do tio. Eu presidirei o julgameto.

15 de janeiro — À morte! à morte! à morte! Fiz com que fosse condenado à morte. Ah! Ah! O advogado de acusação falou como um anjo! Ah! Ah! Mais um. Irei assistir à execução.

10 de março — Acabou. Ele foi guilhotinado esta manhã. Está muito bem morto! Muito bem! Aquilo me deu prazer! Como é bonito ver cortar a cabeça de um homem! O sangue jorrou como uma corrente, como uma corrente! Oh! Se eu pudesse, gostaria de me banhar nela. Que vontade de me deitar ali embaixo, de receber aquilo em meus cabelos e em meu rosto, e de me levantar todo vermelho, todo vermelho! Ah! Se soubessem!

Agora esperarei, posso esperar. Seria preciso tão pouco para me deixar apanhar.

O manuscrito continha ainda muito mais páginas, mas sem relatar qualquer crime novo.

Os médicos alienistas, a quem ele foi confiado, afirmam existir no mundo muitos loucos ignorados, tão hábeis e tão temíveis quanto este monstruoso demente.


***

Título original: Un Fou
Publicado pela primeira vez em 1885
Tradução de CELINA PORTOCARRERO

segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Balzac — AO “CHAT-QUI-PELOTE” - Ilustrações

HONORÉ DE BALZAC - AO “CHAT-QUI-PELOTE”
(...) uma manhã chuvosa do mês de março, um rapaz, cuidadosamente envolto na sua capa, estava sob o telheiro da loja fronteira àquela velha habitação e parecia examiná-la com o entusiasmo de um arqueólogo.

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— Está vendo o que o amor me fez fazer? — sussurrou o artista ao ouvido da tímida criatura, que ficou apavorada com essas palavras.

segunda-feira, 25 de julho de 2016

Dia do Escritor

Os Escritores



Foi somente no início do século XIX que a autoria passou a experimentar uma evolução que a converteria em uma profissão cuja recompensa podia ser a riqueza e também a fama.

Anteriormente, o aspirante a autor tinha que elaborar uma lista de subscrições antes de publicar algo, e as vendas se limitavam aos quais estivesse se inscrito nela. Não se imprimiam mais exemplares além do que era previsto.

Este método, conhecido como o sistema de mecenato, era a única esperança de autossuficiência para um autor em tempos onde a maior parte das pessoas não sabiam ler, e onde somente uns poucos tinham dinheiro para comprar livros, tempo para lê-los ou o acesso fácil às suas fontes de distribuição.

Porém a tecnologia da imprensa alterou esse cenário. Ficava mais barato imprimir, encadernar e enviar os livros. Assim, multiplicaram-se as redes de transporte, as quais permitiam distribuir os livros cada vez mais distantes do lugar de publicação.

Os membros da classe média em expansão voltaram seus olhos para os livros em busca de conhecimento e lazer, e talvez acima de tudo, ampliar a sua experiência no mundo.

Agora, em lugar de limitar-se a um grupo limitado de mecenas, os autores podiam sonhar em atingir um grande número de pessoas e de qualquer condição.

Seus livros, vendidos a preços baixos, mas em enormes quantidades, podiam proporcionar aos escritores uma fama e uma fortuna que nunca haviam alcançado antes na história da literatura.


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(Adaptado de Nina Baym na introdução ao romance A Letra Escarlate de Nathaniel Hawthorne).