segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Aster Navas — Números (miniconto)

Números — Aster Navas


Sobre a mesa onde escrevo essas linhas têm três livros e dois cadernos. Da janela da sala se pode ver uma praça onde brincam… 17, não, 18 crianças, que são cuidadas por nove adultos.

Do ônibus que para no ponto saem 9 homens, quatro mulheres e o nosso protagonista.

Silvia, minha mulher, ri quando digo que estou escrevendo, combinando letras. O seu, querido — já me disse, com essa, 19 vezes— são os números.

Não entendo no que ela se embasa.

Tradução: Herman Schmitz
Aster Navas. Cuentos para leer em el ascensor. 2011

terça-feira, 12 de agosto de 2014

19 Princípios Para Crítica Literária — Roberto Schwarz

19 Princípios Para Crítica Literária


1. Acusar os críticos de mais de 40 anos de impressionismo, os de esquerda de sociologismo, os minuciosos de formalismo, e reclamar para si uma posição de equilíbrio.

2. Citar em alemão os livros lidos em francês, em francês os espanhóis, e nos dois casos fora de contexto.

3. Começar sempre por uma declaração de método e pela desqualificação das demais posições. Em seguida praticar o método habitual (o infuso).

4. Nunca apresentar a vida do autor sem antes atacar o método biográfico. Vários acertos podem ser compensados por uma redação horrível.

5. Não esqueça: o marxismo é um reducionismo, e está superado pelo estruturalismo, pela fenomenologia, pela estilística, pela nova crítica americana, pelo formalismo russo, pela crítica estética, pela linguística e pela filosofia das formas simbólicas.

6. Citar muito e nunca a propósito. Uma bibliografia extensa é capital. Apoie a sua tese na autoridade dos especialistas, de preferência incompatíveis entre si.

7. A argumentação deve ser técnica, sem relação com as conclusões.

8. Não esqueça: o marxismo é um reducionismo, e está superado pelo estruturalismo, pela fenomenologia, pela estilística, pela nova crítica americana, pelo formalismo russo, pela crítica estética, pela linguística e pela filosofia das formas simbólicas.

9. Resolva sempre sem entrar no mérito da questão.

10. Para as questões de ontologia, Wellek; para as de forma Kayser,e ultimamente Todorov.

11. A psicanálise está menos superada que o marxismo, mas também é muito unilateral.

12. Não esqueça: o marxismo é um reducionismo, e está superado pelo estruturalismo, pela fenomenologia, pela estilística, pela nova crítica americana, pelo formalismo russo, pela crítica estética, pela linguística e pela filosofia das formas simbólicas.

13. Afrânio Coutinho e os Concretistas introduziram a crítica científica no Brasil.

14. Publique longos resumos de livros sem importância, convença o editor a traduzi-los e o leitor a lê-los. Há quase 700.000 universitários no país.

15. Um doutoramento vale ouro.

16. O semantema glúteo em linguística moderna tende à polissemia.

17. A crítica de nosso tempo é engajada e autêntica, e não descura de sua vocação profunda, de seu compromisso com o homem no que ele tem de eterno e no que tem de circunstancial, compromisso que irá cumprir resolutamente até o fim. Isto é que é importante.

18. Os livros editados pela Universidade de Indiana e importados pela livraria Pioneira são importantíssimos. Se pelo contrário você é de formação francesa, não deixe de aplicar o método de Chomsky e Propp. O resultado não se fará esperar.

19. Muito Cuidado com o óbvio. O mais seguro é documentá-lo sempre estatisticamente! Use um gráfico se houver espaço.



SCHWARZ, Roberto. O Pai de família e outros Estudos. Ed. Paz e Terra, 1970.

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Franz Kafka — Poseidon

Poseidon sentou-se em seu escritório, revisando as contas. A administração de todas as águas dava-lhe um trabalho insano. Ele poderia ter quantos assistentes desejasse, e de fato tinha um grande número deles, mas, como levava seu trabalho muito a sério, teimava repassar os olhos por todas as contas, e assim seus assistentes de pouco lhe valiam. Não se pode dizer que se divertisse com a função; ele a levava adiante simplesmente porque era o que lhe haviam atribuído; em verdade, com frequência, havia requisitado o que chamava de um trabalho mais alegre, mas sempre que várias sugestões lhe foram mostradas o resultado era que nenhuma delas lhe era adequada como o era sua presente ocupação. Desnecessário dizer, era muito difícil arrumar para ele uma outra profissão. Afinal, ele não poderia ser o responsável por um oceano em particular. Independentemente do fato de que num caso como este o volume de trabalho envolvido não seria menor, apenas mais aprazível, o grande Poseidon só poderia ocupar uma posição superior. E quando lhe foi oferecido um posto não relacionado com as águas, esta mera possibilidade fez com que ele se sentisse doente, sua divina respiração tornou-se escassa e seu peito de aço começou a arfar. Para falar a verdade, ninguém levou sua reação a sério; quando um homem poderoso se queixa espera-se que ele grite, por mais desesperante que seja o caso. Ninguém jamais, de fato, considerou a possibilidade de retirar Poseidon de sua posição; ele estava destinado a ser o Deus dos Mares desde os tempos imemoriais, e assim era que deveria prosseguir.

O que mais o entediava — e esta era a causa principal de seu desconforto com seu trabalho — era saber dos boatos que circulavam a seu respeito; por exemplo, que ele estava constantemente cruzando as ondas com seu tridente. E no entanto lá estava ele sentado nas profundezas do oceano do mundo revisando contas sem fim; uma viagem ocasional a Júpiter era a única interrupção desta monotonia, uma viagem no entanto da qual retornava invariavelmente furioso. Consequentemente, ele pouco viu dos oceanos, salvo a esquadra que o acompanhava à ascensão ao Olimpo, e na verdade nunca chegou a embarcar nela. Costumava dizer que estava adiando isso tudo até o fim do mundo, pois então deveria surgir um momento tranquilo quando, pouco antes do fim e tendo repassado a última conta, ele poderia ainda fazer uma rápida expedição pelos mares.

Fonte: Flávio Moreira da Costa, Viver de Rir. Ed. Record, 1995.

Milorad Pavić — Interpretação Total

Aprendi de cor a vida de minha mãe e, todas as manhãs, durante uma hora, interpreto-a diante dos espelhos, como no teatro. Isso continua dia após dia, há anos. Uso seus vestidos e seu leque e penteio-me como ela, trançando meus cabelos em forma de touca de lã. Imito-a também na presença dos outros e até no leito do meu bem amado. Nos momentos de paixão, não existo mais, sou ela apenas. Imito-a tão bem, então, que minha paixão desaparece, deixando lugar à dela. Desse modo, ela antecipadamente me roubou todas as carícias do amor. Mas não a censuro por isso, porque sei que também ela foi pilhada da mesma forma por sua mãe. Se alguém me perguntasse agora de que serve tal fogo, responderia: tento colocar-me no mundo de novo, tornando-me, porém, melhor…

Dicionário Kazar - Romance Enciclopédia em 100.000 palavras - edição feminina, PAVIC, Milorad; tradução Herbert Daniel, ed. Marco Zero, São Paulo, 1989.

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Maomé - A Mesa e a Pena de Luz para Escrever

Tal como criou seu trono, Deus criou uma mesa para escrever tão vasta que um homem poderia caminhar nela mil anos. E era a mesa feita de pérolas branquíssimas e as suas extremidades de rubis e o seu centro de esmeralda. Tudo o que nela escrevia era da mais pura claridade. Deus olhava para a mesa centos de vezes por dia e, cada vez que a olhava, construía e destruía, criava e matava… Tal como criou a mesa, Deus criou uma pena de luz para escrever, tão larga e longa que um homem a poderia percorrer, em largura ou comprimento, quinhentos anos. E, esta criada, Deus ordenou-lhe que escrevesse. Disse a pena «Que escrevo?» A ela respondeu, «Escreverás a minha sabedoria e todas as minhas criaturas, desde o princípio do mundo até ao seu fim».

O Livro da Escada de Maomé, cap. XX

Moacyr Scliar — Zap

Não faz muito que temos esta nova TV com controle remoto, mas devo dizer que se trata agora de um instrumento sem o qual eu não saberia viver. Passo os dias sentado na velha poltrona, mudando de um canal para outro - uma tarefa que antes exigia certa movimentação, mas que agora ficou muito fácil. Estou num canal, não gosto - zap, mudo para outro. Não gosto de novo - zap, mudo de novo. Eu gostaria de ganhar em dólar num mês o número de vezes que você troca de canal em uma hora, diz minha mãe. Trata-se de uma pretensão fantasiosa, mas pelo menos indica disposição para o humor, admirável nessa mulher.

Sofre, minha mãe. Sempre sofreu: infância carente, pai cruel etc. Mas o seu sofrimento aumentou muito quando meu pai a deixou. Já faz tempo; foi logo depois que nasci, e estou agora com treze anos. Uma idade em que se vê muita televisão, e em que se muda de canal constantemente, ainda que minha mãe ache isso um absurdo. Da tela, uma moça sorridente pergunta se o caro telespectador já conhece certo novo sabão em pó. Não conheço nem quero conhecer, de modo que - zap - mudo de canal. "Não me abandone, Mariana, não me abandone!" Abandono, sim. Não tenho o menor remorso, em se tratando de novelas: zap, e agora é um desenho, que eu já vi duzentas vezes, e - zap - um homem falando. Um homem, abraçado à guitarra elétrica, fala a uma entrevistadora. É um roqueiro. Aliás, é o que está dizendo, que é um roqueiro, que sempre foi e sempre será um roqueiro. Tal veemência se justifica, porque ele não parece um roqueiro. É meio velho, tem cabelos grisalhos, rugas, falta-lhe um dente. É o meu pai.

É sobre mim que fala. Você tem um filho, não tem?, pergunta a apresentadora, e ele, meio constrangido - situação pouco admissível para um roqueiro de verdade -, diz que sim, que tem um filho, só que não o vê há muito tempo. Hesita um pouco e acrescenta: você sabe, eu tinha de fazer uma opção, era a família ou o rock. A entrevistadora, porém, insiste (é chata, ela): mas o seu filho gosta de rock? Que você saiba, seu filho gosta de rock? Ele se mexe na cadeira; o microfone, preso à desbotada camisa, roça-lhe o peito, produzindo um desagradável e bem audível rascar. Sua angústia é compreensível; aí está, num programa local e de baixíssima audiência - e ainda tem de passar pelo vexame de uma pergunta que o embaraça e à qual não sabe responder. E então ele me olha. Vocês dirão que não, que é para a câmera que ele olha; aparentemente é isso, aparentemente ele está olhando para a câmera, como lhe disseram para fazer; mas na realidade é a mim que ele olha, sabe que em algum lugar, diante de uma tevê, estou a fitar seu rosto atormentado, as lágrimas me correndo pelo rosto; e no meu olhar ele procura a resposta à pergunta da apresentadora: você gosta de rock? Você gosta de mim? Você me perdoa? - mas aí comete um erro, um engano mortal: insensivelmente, automaticamente, seus dedos começam a dedilhar as cordas da guitarra, é o vício do velho roqueiro, do qual ele não pode se livrar nunca, nunca. Seu rosto se ilumina - refletores que se acendem? - e ele vai dizer que sim, que seu filho ama o rock tanto quanto ele, mas nesse momento -zap - aciono o controle remoto e ele some. Em seu lugar, uma bela e sorridente jovem que está - à exceção do pequeno relógio que usa no pulso - nua, completamente nua.

Fonte: MORICONI, Italo. Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século, Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Milorad Pavić — Sofia

Quando moço, apaixonei-me por uma jovem. Ela não me notava, mas fui perseverante e, certa noite, pude falar com Sofia (era seu nome) de meu amor com um tal ardor que ela me beijou, e senti-lhe as lágrimas em minha face. Pelo sabor das lágrimas, logo compreendi que era cega, mas isto em nada me perturbou. Permanecemos lá, enlaçados, quando ouvimos chegar do bosque próximo um galope de cavalo.
— É um cavalo branco cujo galope atravessa nossos beijos?  perguntou ela.
 Não sabemos  respondi  e saberemos somente quando ele sair do bosque.
 Nada compreendeste  disse Sofia, e no mesmo instante um cavalo branco saiu do bosque.
 Sim, sim, compreendi tudo  repliquei, e perguntei-lhe de que cor eram meus olhos.
 Verdes - disse ela.
 Ora, observai, tenho os olhos azuis...

Dicionário Kazar - Romance Enciclopédia em 100.000 palavras - edição feminina, PAVIC, Milorad; tradução Herbert Daniel, ed. Marco Zero, São Paulo, 1989.

Milorad Pavić — O Espelho Rápido e o Espelho Lento

ATEH (século IX) - Princesa kazar, cuja participação no debate que precedeu a conversão dos kazares foi decisiva. Seu nome significa entre os kazares "os quatro estados do espírito".

De noite, usava em uma das pálpebras uma letra, como aquelas que se inscrevem nas pálpebras dos cavalos antes da corrida. Essas letras pertenciam ao alfabeto kazar proibido, cujas letras matam logo depois de lidas. As letras eram traçadas por cegos e, pela manhã, antes da toalete, as criadas atendiam a princesa com os olhos fechados. Assim, ela ficava protegida de seus inimigos durante o sono. Para os kazares, o sono era o momento em que o homem é mais vulnerável.

Para distraí-la, seus criados trouxeram-lhe, certo dia, dois espelhos. Não eram muito diferentes dos outros espelhos kazares. Ambos eram feitos de sal polido, no entanto um era rápido e o outro lento. O que o espelho rápido tirava do futuro ao refletir o mundo, o espelho lento devolvia, pagando a dívida do primeiro, pois este atrasava em relação ao presente tanto quanto avançava o outro. Quando trouxeram os espelhos para a princesa Ateh, ela ainda estava no leito, e as letras inscritas nas suas pálpebras ainda não tinham sido apagadas. Ela viu-se nos espelhos com os olhos fechados e morreu imediatamente. Sucumbiu entre duas batidas de pálpebra, mais exatamente no momento em que leu pela primeira vez as letras mortais inscritas em suas pálpebras. Ela, piscara no momento precedente e no momento seguinte, e os espelhos refletiram isso. Morreu, fulminada ao mesmo tempo pelas letras do passado e pelas do futuro.



Dicionário Kazar - Romance Enciclopédia em 100.000 palavras - edição feminina, PAVIC, Milorad; tradução Herbert Daniel, ed. Marco Zero, São Paulo, 1989.