terça-feira, 27 de janeiro de 2015

A Literatura como uma borboleta invisível — César Aira

Como uma borboleta invisível


A Literatura, essa instituição grandiosa e pesadíssima, também podia ser pequena e leve como uma borboleta invisível, também podia ser uma partícula subatômica (mas de marfim, com encantadoras figuras entalhadas) que atravessava a crosta terrestre, e as madeiras e metais, para fincar-se no mais mole de meus miolos… E sua ferida deliciosa foi tão oportuna, veio tão a calhar, como uma introdução bem escrita a um livro denso e difícil, dessas que, uma vez lidas, tornam a leitura do livro praticamente inútil.


César Aira, A Trombeta de Vime, 1998.

segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

O Fluxo da Vida — José Pinheiro Neves

O Fluxo da Vida


O fluxo que faz corrente pode ser

                   regato

                         ribeiro

                                 rio ou mar,

aliás como a vida, que chega a ser levada abundante,

mas também fluxo brando,

e mesmo fluxo de fio de água,

                 extenuado.



De certos fluxos se pode dizer que


                                     rebentam em fartos borbotões,

que misturam águas e ganham força,

                       ou então que abrandam,

para logo retomarem vigor,

                       ou para se diluírem

e mesmo se extinguirem.



Os fluxos podem jorrar às golfadas

                                                       e em esguiche,

em movimento rápido ou lento,

                            em volume caudaloso ou delgado.



Dos fluxos também se pode dizer que têm cadência,

                                              a cadência certa,

ou então uma cadência hesitante,

                             e ainda uma cadência tumultuosa.



Fluir ao "ritmo da vida" (Maffesoli)

é viver nuns casos energicamente,

e noutros quase desfalecendo.



                                       Um fluxo vive de impulsos,

sendo pois do domínio da descontinuidade.



                      A continuidade de um fluxo

não nos garante a estabilidade.



                                             Qualquer equilíbrio conseguido

                                encontra-se sempre

ameaçado de instabilidade.



O continuum do curso de um fluxo

                              (de uma vida) é,

                                                   pois,

                                                           uma abstração,

                                           uma substancialização,

                                   uma reificação.



Podendo ser sempre palpitante,

                           o equilíbrio do curso de um fluxo

não pode deixar de ocorrer

                no meio de um turbilhão

                               (no meio do tumulto da vida).

José Pinheiro Neves, 'O Apelo ao Objeto Técnico — A perspectiva sociológica de Deleuze e Simondon'. Campo das Letras Editores, 2006.
Diagramação: O Publisher

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Aquilo que eu sou - Erik Satie

AQUILO QUE EU SOU

Toda a gente vos dirá que não sou músico. E é verdade.

Desde o início da minha carreira me classifiquei entre os fonometrógrafos. Os meus trabalhos são pura fonométrica. Agarre-se no Filho das Estrelas ou nos Trechos em Forma de Pera, no Com Fato de Cavalo ou nas Sarabandas, e descobrir-se-á que nenhuma ideia musical presidiu à criação de tais obras. O que lá domina é o pensamento científico.

De resto, mais prazer sinto a medir um som do que a ouvi-lo. De fonómetro em punho, trabalho com alegria & segurança.

O que não terei já pesado e medido? Todo o Beethoven, todo o Verdi, etc. É muito curioso.

Da primeira vez que me servi de um fonoscópio, examinei um si bemol de tamanho médio. Nunca deparei, posso garantir-vos, com uma coisa mais repugnante. Até chamei o criado para ele ver.

Com o fono-pesador um fá sustenido vulgar, como tantos há, atingiu os 93 quilogramas. Saía de um muito gordo tenor que também pesei.

E sabeis, por acaso, o que é limpar os sons? É uma coisa muito porca. Fiá-los é mais limpo. E quanto a sabê-los classificar, exige minúcia e boa vista; está-se em plena fonotécnica.

No que respeita às explosões sonoras tantas vezes desagradáveis, o algodão metido nos ouvidos consegue só por si atenuá-las razoavelmente. Está-se em plena pirofonia.

Para escrever as Peças Frias, servi-me de um caleidofone-gravador. Demorei sete minutos. E até chamei o criado para as ouvir.

Julgo poder afirmar que a fonologia é superior à música. É mais variada. E dá maior rendimento pecuniário. Devo-lhe a minha fortuna.

Seja como for, é mais fácil um fonometrista mediocremente treinado registar no motodinamofone um maior número de sons, do que o mais hábil músico em tempo idêntico e com idêntico esforço. Por isso mesmo eu tanto escrevi.

O futuro pertence, pois, à filofonia.


Erik Satie, Memória de um Amnésico, págs. 34-35, Hiena Editora, Lisboa, 1992.

quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

Genealogia Mairum - Darcy Ribeiro

Genealogia Mairum

A onça Putir, da casa do jaguar, pariu a onça Moitá que pariu a onça Pinu que pariu a onça Mbiá que pariu a oncinha Putir para começar tudo de novo.

Iaci, da casa dos carcarás, pariu a gaviã Iuicui que pariu a gaviã Numiá, que pariu a gaviã Inimá, que há de parir a netinha da gaviã Iaci para começar tudo outra vez.

Uruantã, tuxaua da casa do jaguar, deu ao aroe Uirá dos carcarás a sua irmã Putir para nela gerar onças e recebeu a Iaci, irmã de Uirá, para nela engendrar a sucessão dos carcarás.

Anacã, tuxaua da casa do jaguar, cumprindo a tradição, tomou como mulher a gaviã Iuicui para nela gerar novos gaviõezinhos e deu ao aroe Remui, da casa dos carcarás, a sua irmã Moitá para nela gerar oncinhas.

Teró, da casa dos carcarás, seguindo a tradição, tomou Pinuarana dos jaguares e nela gerou, para a casa das onças, a Jaguar e a Mbiá. Mas, rompendo a tradição, em lugar de fazer a sua irmã Numiá esperar o desaparecido Avá, a entregou a Cosó da casa dos pacus, com o trato de que ela só geraria gente carcará, para a casa do jaguar.

Assim é que o pacu Cosó engendrou em Numiá dos carcarás a Inimá e a Náru. Há quem duvide que Náru possa um dia ser aroe e gerar um tuxaua. Mais duvidoso ainda é que sua irmã Inimá haja de parir o futuro aroe.

Darcy Ribeiro, Maíra, 1977.

sábado, 17 de janeiro de 2015

Sobre a leitura hoje — Gilles Deleuze


As boas maneiras de ler hoje

(...) as boas maneiras de ler hoje, e chegar a tratar um livro como se escuta um disco, como se olha um filme ou um programa de televisão, como se é tocado por uma canção: todo tratamento do livro que exigisse um respeito especial, uma atenção de outra espécie, vem de uma outra era e condena definitivamente o livro. Não há nenhuma questão de dificuldade nem de compreensão: os conceitos são exatamente como sons, cores ou imagens, são intensidades que convêm a você ou não, que passam ou não passam. 'Filosofia Pop'. Não há nada a compreender, nada a interpretar"

Gilles Deleuze, in Dialogues. Flammarion, Paris 1977, p. 10.

Surrealismos Tropicais — Campos de Carvalho

Vida Sexual dos Perus

Aos dezesseis anos matei meu professor de Lógica. Invocando a legítima defesa - e qual defesa seria mais legítima? - logrei ser absolvido por 5 votos contra 2, e fui morar sob uma ponte do Sena, embora nunca tenha estado em Paris.

Deixei crescer a barba em pensamento, comprei um par de óculos para míope, e passava as noites espiando o céu estrelado, um cigarro entre os dedos. Chamava-me então Adilson, mas logo mudei para Heitor, depois Ruy Barbo, depois finalmente Astrogildo, que é como me chamo ainda hoje, quando me chamo.

A primeira mulher que possuí foi sob a ponte do Sena, em pleno coração do meu Paris imaginário; e ainda me lembro de que ela me sorria com uns dentes que refletiam as estrelas e as lâmpadas do cais adormecido, e dizia-me coisas numa língua que eu não conhecia. Paguei-lhe à vista, e subi eufórico em direção a uma rua de onde vinham sons de uma mandolinata inenarrável, e que se esvanecia à medida que eu me aproximava, e que acabou por desaparecer de todo. Sentei-me no chão, aturdido, acendi um cigarro e deixei que ele fumasse por si mesmo, e depois morri tranquilamente, dentro da noite calma.

Campos de Carvalho, A Lua vem da Ásia, 1956.

segunda-feira, 12 de janeiro de 2015

O Cão e o Perfume - Poema em prosa de Charles Baudelaire

O Cão e o Perfume - Charles Baudelaire


— Meu lindo cachorro, meu bom cão, querido totó! Aproxime-se, venha respirar um excelente perfume comprado na casa do melhor perfumista da cidade.

E o cão, sacudindo a cauda, o que me parece ser, nesses pobres seres, um sinal correspondente à gargalhada e ao sorriso, aproxima-se e pousa curiosamente o focinho no frasco aberto. Mas depois, recuando bruscamente, assustado, late contra mim, à guisa de censura.

— Ah! miserável cão, se eu lhe tivesse oferecido um punhado de excremento, você o farejaria com delícia e talvez o devorasse. Até você, indigno companheiro de minha vida triste, se parece com o público, ao qual nunca se devem apresentar perfumes delicados que o exasperem, mas sujeiras cuidadosamente escolhidas.

Charles Baudelaire, Pequenos Poemas em Prosa, 1869.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Libelo Contra a Arte Moderna (final) — Salvador Dalí

Libelo Contra a Arte Moderna (final) — Salvador Dalí


Uma jota [canção popular] aragonesa tem por refrão estridente este grito visceral, ibérico e irracional:"Eu te amo como se ama a mãe, como se ama o dinheiro!"

O que mais me agrada em todo o pensamento de Augusto Comte é o momento preciso em que, antes de fundar sua nova religião positivista, ele coloca, no topo de sua hierarquia, os banqueiros, aos quais atribui uma importância capital. Talvez esteja ai o lado fenício do meu sangue ampurdan [cantão da Catalunha], mas sempre fui fascinado pelo ouro sob qualquer forma que se apresente. Desde a adolescência, tendo aprendido que Miguel de Cervantes, após ter escrito para a maior glória da Espanha seu imortal Dom Quixote, morreu na maior miséria, e que Cristóvão Colombo, após ter descoberto o Novo Mundo, morreu nas mesmas condições e além do mais na prisão, desde a adolescência, eu dizia, minha prudencia me aconselhou fortemente duas coisas:

1) fazer minha prisão o mais cedo possível. E isso foi feito.
2) tomar-me tanto quanto possível levemente multimilionário. E isso também foi feito.

A maneira mais simples de recusar toda concessão ao ouro é tê-lo a gente mesma. Com ouro, torna-se inteiramente inútil "engajar-se". Um herói não se engaja em parte alguma! Ele e o contrario do domestico. É preciso realmente ter os dentes cobertos de Sartre* para não ousar falar assim! Portanto, sejamos prudentes, como recomenda Saint-Granier, se quisermos nos permitir ser nietzschianos. Todos os valores concretos da pintura moderna serão sempre traduzíveis, no plano material, nesta coisa que eu pessoalmente sempre amei: o dinheiro!

Em troca, que se tranquilizem os críticos puros que sempre desprezaram o dinheiro e tiveram medo de sujar-se tocando-o: os valores abstratos que eles defendem na pintura moderna se converterão inelutavelmente em dinheiro inteiramente limpo, totalmente inofensivo e imaterial. Será o dinheiro puramente abstrato.

[*Dalí visa provavelmente aqui um trocadilho com o nome do
filósofo francês, associado a "tartre", o tártaro dentário.]

FIM
S. S. AMERICA
A CAMINHO DE LE HAVRE, ABRIL DE 1956

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

É de confundir! — Conto de Villiers De L’isle-Adam


É de confundir! — Conto de Auguste Villiers De L’isle-Adam

Numa cinza manhã de novembro, eu ia descendo pela beira do rio em passo apressado. Uma garoa fria molhava o ar. Passantes negros, abrigados em guarda- chuvas disformes, se entrecruzavam. O Sena amarelado carregava seus barcos de mercadorias parecidos com besouros. Nas pontes, o vento fustigava bruscamente os chapéus, cujos donos lutavam com o espaço para salvá-los, fazendo aqueles gestos e contorções sempre tão penosos para o artista.

Minhas idéias eram pálidas e brumosas; a preocupação de um encontro de negócios, aceito na véspera, atazanava minha imaginação. O tempo era curto, resolvi me abrigar debaixo da marquise de um portão, de onde seria mais cômodo fazer sinal para um fiacre.

Na mesma hora notei, bem ao meu lado, a entrada de um prédio quadrado, de aparência burguesa.

Ele tinha se erguido na bruma como uma aparição de pedra, e, apesar da rigidez de sua arquitetura, apesar do vapor sinistro que o envolvia, percebi de imediato um certo ar de hospitalidade que serenou meu espírito.

"Sem a menor dúvida", pensei, "as pessoas que moram aqui são gente sedentária! Essa soleira é um convite a parar! A porta não está aberta?"

Então, com a maior polidez do mundo, satisfeito, chapéu na mão — até mesmo meditando em um madrigal para a dona da casa —, entrei, sorridente, e logo me deparei, no mesmo nível, com uma espécie de sala de teto envidraçado, de onde caía a luz do dia, lívida.

Nas colunas estavam pendurados roupas, cachecóis, chapéus.

Mesas de mármore estavam instaladas em todos os cantos.

Vários indivíduos, de pernas esticadas, cabeça levantada, olhos fixos, jeito confiante, pareciam meditar.

E os olhares eram sem pensamentos, os rostos eram da cor do tempo.

Havia pastas abertas, papéis desdobrados perto de cada um deles.

E então percebi que a dona da casa, com a cortesia acolhedora com que eu estava contando, era ninguém menos do que a Morte.

Olhei para meus anfitriões.

Decerto, para escapar dos aborrecimentos da vida azucrinante, a maioria dos que ocupavam a sala tinha assassinado seus corpos, esperando, assim, um pouco mais de bem-estar.

Quando estava ouvindo o barulho das torneiras de cobre presas no muro e destinadas a regar diariamente aqueles restos mortais, escutei o ruído surdo de um fiacre. Ele parou defronte do estabelecimento. Fiz a reflexão de que meus homens de negócios estavam esperando. Virei-me para aproveitar a boa fortuna.

De fato, o fiacre acabava de vomitar, na soleira do prédio, colegiais de pileque, que precisavam ver a Morte para acreditar nela.

Olhei para o fiacre vazio e disse ao cocheiro:

"Passage de L’Opéra!"

Um pouco depois, nos bulevares, achei o tempo mais encoberto, sem nenhum horizonte. Os arbustos, vegetações esqueléticas, pareciam indicar vagamente, com a ponta dos galhos negros, alguns pedestres aos policiais ainda sonolentos.

O carro ia apressado.

Pela vidraça, os passantes me davam a impressão de água correndo.

Chegando ao meu destino, pulei para a calçada e peguei a passagem, repleta de rostos preocupados.

No final do corredor, bem na minha frente, reparei na entrada de um café — desde então consumido por um famoso incêndio (pois a vida é um sonho) —, relegado ao fundo de uma espécie de galpão, debaixo de uma arcada quadrada, de sinistra aparência. Os pingos de chuva que caíam no vidro de cima escureciam mais ainda a pálida claridade do sol.

"É aqui", pensei, "que me esperam os meus homens de negócios, de copo na mão, olhos brilhantes e desafiando o Destino!"

Então, virei a maçaneta da porta e me deparei, no mesmo nível, com uma sala onde a claridade do dia caía do alto, lívida, pela vidraça.

Em colunas havia roupas, cachecóis, chapéus pendurados.

Mesas de mármore estavam instaladas em todos os cantos.

Vários indivíduos, de pernas esticadas, cabeça levantada, olhos fixos, jeito confiante, pareciam meditar.

E os rostos eram da cor do tempo, os olhares eram sem pensamentos.

Havia pastas abertas, papéis desdobrados perto de cada um deles.

Olhei para esses homens.

Decerto, para escapar das obsessões da insuportável consciência, a maioria dos que ocupavam a sala tinha, muito tempo antes, assassinado suas "almas", esperando assim um pouco mais de bem-estar.

Quando estava ouvindo o barulho das torneiras de cobre presas no muro e destinadas a regar diariamente aqueles restos mortais, a lembrança do ruído surdo do carro voltou ao meu espírito.

"Com toda a certeza", pensei, "aquele cocheiro deve ter sido atacado, no correr do tempo, por uma espécie de estupor, pois simplesmente me trouxe, depois de tantas circunvoluções, ao nosso ponto de partida! Todavia, confesso (caso haja um equívoco), o segundo olhar é mais sinistro que o primeiro!..."

Então, em silêncio fechei a porta envidraçada e voltei para casa, firmemente decidido — desconsiderando o exemplo e pouco me importando com o que pudesse me acontecer — a nunca mais fazer negócios. 



Título original: A s'y meprendre!, In Contes Cruels, 1883
Tradução de Rosa Freire D'Aguiar

O Amor e a Loucura — La Fontaine

Fábula 

No amor tudo é mistério: suas flechas e sua aljava, sua chama e sua infância eterna.

Mas por que o amor é cego?

Aconteceu que um certo dia o Amor e o Loucura brincavam juntos. Aquele ainda não era cego.

Surgiu entre eles um desentendimento qualquer. Pretendeu então o Amor que se reunisse para tratar do assunto o conselho dos deuses. Mas a Loucura, impaciente, deu-lhe uma pancada tão violenta que lhe privou da visão.

Vênus, mãe e mulher, pôs-se a clamar por vingança, aos gritos. E diante de Júpiter, Nêmesis — a deusa da vingança — e todos os juízes do Inferno, Vênus exigiu que aquele crime fosse reparado. Seu filho não podia ficar cego.

Depois de estudar detalhadamente o caso, a sentença do supremo tribunal celeste consistiu em condenar a Loucura a servir de guia para o Amor.



Jean de La Fontaine, O Amor e a Loucura. In Os Melhores Contos de Loucura. Org. de Flávio Moreira da Costa, 2007.