sexta-feira, 31 de outubro de 2014

A Barba — Arthur Schopenhauer (A Arte de Insultar)

A barba


   A barba, por ser quase uma máscara, deveria ser proibida pela polícia. Além disso, enquanto distintivo do sexo em meio ao rosto, ela é obscena: por isso é apreciada pelas mulheres.

   Dizem que a barba é natural ao homem: não há dúvida, e por isso ela é perfeitamente adequada ao homem no estado natural; do mesmo modo, porém, no estado civilizado é natural ao homem fazer a barba, uma vez que assim ele demonstra que a brutal violência animalesca — cujo emblema, percebido imediatamente por todos, é aquela excrescência de pelos, característica do sexo masculino — teve de ceder à lei, à ordem e à civilização. A barba aumenta a parte animalesca do rosto e a ressalta. Por essa razão, confere-lhe um aspecto brutal tão evidente. Basta observar um homem barbudo de perfil enquanto ele come! Este pretende que a barba seja um ornamento. No entanto, há duzentos anos era comum ver esse ornamento apenas em judeus, cossacos, capuchinhos, prisioneiros e ladrões. A ferocidade e a atrocidade que a barba confere à fisionomia dependem do fato de que uma massa respectivamente sem vida ocupa a metade do rosto, e justamente aquela que expressa a moral. Além disso, todo tipo de pelo é animalesco.

   Olhai ao vosso redor! O sintoma externo da brutalidade cada vez mais crescente pode até mesmo ser reconhecido como o elemento que constantemente a acompanha — a barba longa, esse distintivo sexual em meio ao rosto, dizendo-nos que à humanidade prefere-se a masculinidade. Esta nos coloca em pé de igualdade com os animais, uma vez que leva o indivíduo a querer ser antes de tudo um macho, mas, e somente depois um homem. Em todas as épocas e em todos os países civilizados, o costume de barbear-se derivou da noção correta do contrário, motivo pelo qual se pretendia sobretudo ser um homem, de certo modo um homem in abstrato, sem levar em conta a diferença animalesca do sexo. Em contrapartida, o comprimento da barba sempre acompanhou pari passu a barbárie, assemelhando-se a esta inclusive no nome.

A Arte de Insultar. Arthur Schopenhauer, 2003.

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Lamentos de Ipu-ur - Poesia Egípcia (XII Dinastia)

Lamentos de Ipu-ur


Em verdade o rosto está pálido () o
que os ancestrais predisseram aconteceu.

Em verdade () o país está cheio de bandos [revoltosos],
e para lavrar um homem leva seu escudo.

Em verdade o cordato diz () é um homem de recursos.

Em verdade [o rosto] está lívido e o arqueiro está pronto,
o crime alastrou-se e não há homens como antigamente.

Em verdade os ladrões estão por toda parte,
os criados levam o que encontram.

Em verdade o Nilo inunda mas ninguém lavra para si,
pois todos dizem "Não sabemos o que sucederá ao pais".

Em verdade as mulheres estão estéreis, nenhuma concebe:
Chnum não molda [mortais] por causa da situação do pais.

Em verdade os pobres passaram a exibir luxo,
e o que não podia ter () sandálias possui riqueza

Em verdade os criados estão vorazes
e o poderoso não mais compartilha [de alegria] com sua gente

Em verdade [os corações] estão violentos, a calamidade varre o país,
há sangue por toda parte, não faltam mortos:
as faixas das múmias clamam para que se chegue a elas.

Em verdade muitos mortos são atirados no rio:
a correnteza virou sepultura e o Lugar Puro virou torrente.

Em verdade os ricos deploram e os pobres exultam;
cada cidade diz: "Expulsemos os poderosos!"

Em verdade as pessoas são como os ibis: a sujeira alastra-se
e hoje ninguém possui vestes brancas.

Em verdade o pais como que roda no torno do oleiro:
o salteador torna-se rico e o rico [torna-se] ladrão.

Em verdade os criados de confiança são como ()
Os habitantes [exclamam]: "Ai, o que será de mim?"

Em verdade o rio é sangue:
bebido, é vomitado porque [nele] há gente,
embora continue a sede de água.

Em verdade os crocodilos [estão] fartos de suas presas,
(pois) as pessoas atiram-se a eles de propósito.
O pais está ultrajado.

Todos dizem: "Não andes por aqui, é uma armadilha!"
As pessoas debatem-se [na água] como peixe,
os assustados nada distinguem em seu terror.

Em verdade () povo diminuiu,
o que enterra seu irmão está por toda parte.
A palavra do sábio logo fugiu.

Em verdade o filho do rico não é mais reconhecido,
o filho da senhora tomou-se (como) filho de sua criada.

Em verdade ()
não há egípcio em lugar algum.

Em verdade ouro, lápis-lazúli, prata e turquesa,
cornalina, ametista, ibehaty e [todas] as nossas [jóias]
pendem no pescoço das criadas.


Papiro de Ipu-ur (fragmentos) 
Escrito ao final da XII Dinastia e o Segundo Período Intermediário do Egito, entre 1850 a.C. e 1600 a.C.

sábado, 25 de outubro de 2014

Ernest Hemingway — Escrevendo em Paris

Escrevendo em Paris

   
   Era um café agradável, quente, limpo e acolhedor. Pendurei minha velha capa no cabide, para secar, coloquei meu surrado e desbotado chapéu de feltro na prateleira que ficava por cima dos bancos e pedi um café au lait. O garçom trouxe-o e eu tirei do bolso do paletó o caderno de notas e um lápis e comecei a escrever.
   Estava escrevendo um conto que se passava em Michigan e, como o dia estava péssimo, frio e ventoso, coloquei em minha história um dia exatamente assim. Eu já conhecia muitos fins de outono, da minha infância, da adolescência e dos primeiros anos da idade adulta, e sabia que há lugares em que se pode escrever melhor sobre essa época do ano do que em outros. É o que se chama de transplantação, pensei, e isso podia ser tão necessário às pessoas como a outras espécies de coisas que crescem. No meu conto os rapazes estavam bebendo, e isso me deu sede: pedi um rum Saint James. Caiu-me bem, naquele dia frio, e continuei a escrever, sentindo-me aquecido, no corpo e no espírito, por aquele esplendido rum da Martinica.
   Uma moça entrou no café e sentou-se perto da janela. Era muito bonita, com um rosto fresco como moeda acabada de cunhar, se é que se possa cunhar moedas em carne tão macia, coberta de pele umedecida pela chuva. Seus cabelos eram negros como a asa de um corvo, cortados rente e em diagonal à face. Olhei para ela, senti-me perturbado e numa grande excitação. Desejei colocá-la no meu conto, ou noutra parte qualquer, mas a moça se colocara de maneira a poder acompanhar o movimento da rua e da entrada do café, e compreendi que estava à espera de alguém. Por isso, continuei a escrever.
   O conto escrevia-se por si próprio, e eu tinha dificuldade em conduzi-lo. Pedi outro rum Saint James, observando a moça todas as vezes que levantava os olhos ou quando fazia a ponta do lápis, com um apontador, deixando as raspas encaracoladas no pires que tinha sob o cálice. — Eu te vi, oh beleza, tu me pertences agora, seja quem for que estejas esperando e mesmo que nunca te veja mais em toda a minha vida  pensei. Tu me pertences, toda Paris me pertence e eu pertenço a este caderno e a este lápis. Voltei a escrever, entrei a fundo na história e me perdi nela. Agora quem a escrevia era eu; o conto não se escrevia mais a si próprio, de modo que não tornei a levantar a cabeça. Esqueci-me do tempo, do lugar em que me encontrava e nem sequer mandei vir outro rum Saint James. Cansara-me dele sem pensar nisso. Terminei o conto, afinal, sentindo-me realmente cansado. Reli o último parágrafo e, quando levantei os olhos à procura da moça, não a encontrei mais. Tomara que tenha ido com um homem decente, pensei. Mas sentia-me triste.
   Fechei o caderno, coloquei-o no bolso de dentro, pedi ao garçom uma dúzia de portugaises e meia garrafa do vinho branco seco da casa. Depois de escrever um conto sentia-me sempre vazio e simultaneamente triste e feliz, como se tivesse acabado de me entregar ao amor físico: estava seguro de que este conto que acabara de escrever era muito bom, embora não soubesse quanto o era antes de lê-lo de ponta a ponta, no dia seguinte. Comi as ostras, que possuíam forte gosto de mar e um leve travo metálico que o vinho branco gelado lavava, deixando somente o gosto de mar e a suculenta textura; à medida que ia sorvendo o líquido frio de cada concha e o fazia descer acompanhado do estimulante sabor do vinho, o sentimento do vazio me foi abandonando e me vi de novo feliz, cheio de planos.


Ernest Hemingway. Paris é uma Festa (A Moveable Feast), 1964.
Tradução de Enio Silveira

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Nem eu nem ninguém mais pode caminhar esse caminho por você - Walt Whitman


Nem eu nem ninguém mais pode caminhar esse caminho por você. Você deve caminhá-lo por si mesmo. Não está longe, está ao alcance. Talvez você esteja nele desde que nasceu e não saiba. Talvez esteja em todas as partes, sobre a água e sobre a terra.

Walt Whitman

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Alhos de Bugalhos — João Guimarães Rosa

Alhos e Bugalhos

Misturar alhos com bugalhos é tomar uma coisa por outra, fazer confusões. Há também a forma: falo-lhe em alhos, responde-me com bugalhos, consignada em vários adagiários e que significa: Pergunto-lhe uma coisa, responde outra. Há uma outra locução com o mesmo sentido: Confundir germano com gênero humano. João Guimarães Rosa apresenta uma extensão, no conto: “A simples e exata estória do burrinho do comandante”: “O Sr. pode às vezes distinguir alhos de bugalhos, e tassalhos de borralhos e vergalhos de chanfalhos, e mangalhos... Mas, e o vice-versa?"

R. Magalhães Junior. Dicionário Brasileiro de Provérbios, Locuções e Ditos Curiosos, 1974

Pandemônio — John Milton

Pandemônio

Definida hoje por nossos dicionários como conluio de indivíduos para fazer mal ou armar desordens; o Inferno; tumulto; balbúrdia e coisas semelhantes, pandemônio é uma palavra inventada pelo famoso poeta inglês John Milton em seu grande poema O Paraíso Perdido. Aliás, ele escrevia Pandemonium, com maiúscula, e no seu poema tal lugar é o Palácio dos Diabos, ou a capital do Inferno. Embora criada artificialmente, tal palavra tem raízes gregas perfeitas: pan, que significa todos, e daimon, demônios, ou seja, concentração ou assembléia de demônios.

R. Magalhães Junior. Dicionário Brasileiro de Provérbios, Locuções e Ditos Curiosos, 1974

Serendipidade — James M. Schlatter

Serendipidade

Em dezembro de 1965, eu estava trabalhando com o Dr. Mazur na síntese do tetrapeptídeo terminal-C da gastrina. Nós estávamos fazendo compostos intermediários e tentando purificá-los. Particularmente, em uma ocasião em dezembro de 1965, eu estava recristalizando o aspartilfenilalanina metil éster (aspartame) que havia sido preparado... e dado a mim pelo Dr. Mazur. Eu estava aquecendo o aspartame em um frasco com metanol quando a mistura pulou para fora do frasco. Como resultado, um pouco do pó ficou nos meus dedos. Um pouco mais tarde, ao lamber meu dedo para pegar uma folha de papel, percebi um sabor doce muito forte. Inicialmente pensei que pudesse haver um pouco de açúcar em minhas mãos do começo do dia; entretanto, eu logo percebi que isso não podia ser verdade, pois eu havia lavado minhas mãos neste meio-tempo. Assim, remontei a origem do pó em minhas mãos até o recipiente no qual havia colocado o aspartilfenilalanina metil éster cristalizado. Achei que este éster dipeptídeo não deveria ser tóxico, e assim provei um pouco dele e descobri que era a substância que eu saboreara anteriormente em meu dedo.

James M. Schlatter — Aspartame: Fisiologia e Bioquímica, 1984.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Uma noite em lztapa — Aldo Buzzi (Nota)

Uma noite em Iztapa

Me lembro de uma noite em lztapa, às margens do pacífico, na Guatemala. A lua despontava por trás do bambual como um imenso disco vermelho. Era a hora em que as escritoras embebem suas penas no tinteiro e as macacas gritadoras, deslocando-se em bandos para o alto dos galhos, rugem como leões.

Aldo Buzzi - Viagem à Terra das Moscas, 1987

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

As Coisas Pesam Mais se São Olhadas — Julio Cortázar

Julio Cortázar. Os Prêmios, 1975

O Fusca Digerido de H.S. — Poema sobre a seca em SP

O Fusca Digerido


A seca que atinge 70 cidades em São Paulo
Seca rios antes cobertos de água
E hoje mostram-se fantasmas de outras décadas
Pesados objetos afundados em antigos acidentes

Vejo que até uma ponte foi erguida logo ao lado
Também vejo como em uma pintura surreal
Essa terra seca onde pesava o seu leito de águas
Revelar-se uma terra escamada e escoriaçada

Penso nas portas do carro que abriram-se no choque
E por força da ação das águas ficaram escancaradas
E é provável terem assim salvado os seus ocupantes
E os vejo nadando de volta para a superfície

Agora é tudo um mormaço de ar quente
E a água sumiu bebida e evaporada
Deixando com isso treze milhões de sedentos
E um fusca enferrujado para lembrar os ali afogados

Herman Schmitz, Londrina 16 de outubro de 2014

domingo, 21 de setembro de 2014

O Suplício da Esperança — de Villiers de L'Isle-Adam por João Alphonsus

O senhor conhece um conto de Villiers de L'Isle-Adam, o Suplício da Esperança? Não?

Um inquisidor determinou que se suplicie uma de suas vítimas, como último recurso para tentar a salvação de sua alma. Com a esperança de poder fugir da prisão, o homem descobre que a porta do calabouço foi esquecida com a fechadura aberta, empurra-a e sai pelos intermináveis corredores; os frades passam por ele; sem vê-lo em algum cotovelo de muro em que procurava se ocultar; um deles, que vem discutindo com outro sobre alto problema teológico, pousa sobre o fugitivo o olhar distraído, e o fugitivo se imobiliza num calafrio gelado, dentro de um desvão de parede; mas ambos distraidamente se afastam repetindo, entre outras palavras pias, o nome de Cristo: o fugitivo já está vendo a porta de saída, lá fora há luz e ar; se aproxima da liberdade, quando se sente abraçado pelo próprio inquisidor, que o chama de filho e lhe diz para não fugir dali, para não fugir de Cristo…

É assim que guardei a recordação do conto, lido naquele tempo.


In: "Sardanapalo", João Alphonsus. Os Melhores Contos de João Alphonsus. Seleção de Afonso Henriques Neto. São Paulo: Global, 2001.

sábado, 20 de setembro de 2014

Grifo — Antoine Compagnon

Grifo

Ler, com um lápis na mão, como recomendava Erasmo, em De Duplici Copia, assim como todo ensinamento da Renascença, contornar algo do texto com um forte traço vermelho ou negro é traçar o modelo do recorte. O grifo assinala uma etapa na leitura, é um gesto recorrente que marca, que sobrecarrega o texto com o meu próprio traço. Introduzo-me entre as linhas munido de uma cunha, de um pé de cabra ou de um estilete que produz rachaduras na página; dilacero as fibras do papel, mancho e degrado um objeto: faço-o meu. É por isso que na biblioteca toda essa gesticulação íntima me é proibida.

In: COMPAGNON, Antoine. O Trabalho da Citação. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996.

A Próxima Aldeia — Franz Kafka

A Próxima Aldeia — Franz Kafka

Meu avô costumava dizer: "A vida é espantosamente curta. Para mim ela agora se contrai tanto na lembrança que eu por exemplo quase não compreendo como um jovem pode resolver ir a cavalo à próxima aldeia sem temer que — totalmente descontados os incidentes desditosos — até o tempo de uma vida comum que transcorre feliz não seja nem de longe suficiente para uma cavalgada como essa".

In: Um médico rural, Companhia das Letras, 1999. Tradução de Modesto Carone.

quarta-feira, 10 de setembro de 2014

François Rabelais — Conselhos do gigante Gargântua a seu filho Pantagruel

Conselhos do gigante Gargântua a seu filho Pantagruel.

"Aconselho-te, meu filho, a que empregues bem a juventude e aproveites na virtude e no estudo [...] Quero que aprendas perfeitamente línguas, primeiramente o grego, depois o latim; em seguida o hebreu, para conhecimento das Sagradas Escrituras. Que não haja história que não conheças, para o que te ajudará a Cosmografia. Das artes liberais, Geometria, Aritmética e Música, já te deram noções quando eras pequeno, na idade de cinco ou seis anos. Continua a estudá-las e estuda todas as regras de Astronomia. [...] O mundo inteiro está cheio de acadêmicos, pedagogos altamente cultivados, bibliotecas muito ricas, de tal modo que me parece que nem nos tempos de Platão, de Cícero, o estudo era tão confortável como o que se vê a nossa volta. […] Eu vejo que os ladrões de rua, os carrascos, os empregados do estábulo hoje em dia são mais eruditos do que os doutores e pregadores do meu tempo..."

Pantagruel é o herói do primeiro romance de François Rabelais "Os horríveis e apavorantes feitos e proezas do mui renomado Pantagruel, rei dos dipsodos, filho do grande gigante Gargântua", publicado em 1532. Pantagruel é filho do gigante Gargântua e de sua mulher Badebec, que morre durante o parto.

Luís de Camões — Ao desconcerto do Mundo

Ao desconcerto do Mundo

Os bons vi sempre passar
No Mundo graves tormentos;
E para mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado.
Assim que, só para mim,
Anda o Mundo concertado.

Luís de Camões

Rimbaud Livre — A Eternidade

A ETERNIDADE — Arthur Rimbaud

De novo me invade.
Quem? — A Eternidade.
É o mar que se vai
Com o sol que cai.

Alma sentinela,
Ensina-me o jogo
Da noite que gela
E do dia em fogo.

Das lides humanas,
Das palmas e vaias,
Já te desenganas
E no ar te espraias.

De outra nenhuma,
Brasas de cetim,
O Dever se esfuma
Sem dizer: enfim.

Lá não há esperança
E não há futuro.
Ciência e paciência,
Suplício seguro.

De novo me invade.
Quem? — A Eternidade.
É o mar que se vai
Com o sol que cai.

Maio 1872

in CAMPOS, Augusto de. Rimbaud Livre, Ed. Perspectiva, 2002.

segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Aster Navas — Números (miniconto)

Números — Aster Navas


Sobre a mesa onde escrevo essas linhas têm três livros e dois cadernos. Da janela da sala se pode ver uma praça onde brincam… 17, não, 18 crianças, que são cuidadas por nove adultos.

Do ônibus que para no ponto saem 9 homens, quatro mulheres e o nosso protagonista.

Silvia, minha mulher, ri quando digo que estou escrevendo, combinando letras. O seu, querido — já me disse, com essa, 19 vezes— são os números.

Não entendo no que ela se embasa.

Tradução: Herman Schmitz
Aster Navas. Cuentos para leer em el ascensor. 2011

terça-feira, 12 de agosto de 2014

19 Princípios Para Crítica Literária — Roberto Schwarz

19 Princípios Para Crítica Literária


1. Acusar os críticos de mais de 40 anos de impressionismo, os de esquerda de sociologismo, os minuciosos de formalismo, e reclamar para si uma posição de equilíbrio.

2. Citar em alemão os livros lidos em francês, em francês os espanhóis, e nos dois casos fora de contexto.

3. Começar sempre por uma declaração de método e pela desqualificação das demais posições. Em seguida praticar o método habitual (o infuso).

4. Nunca apresentar a vida do autor sem antes atacar o método biográfico. Vários acertos podem ser compensados por uma redação horrível.

5. Não esqueça: o marxismo é um reducionismo, e está superado pelo estruturalismo, pela fenomenologia, pela estilística, pela nova crítica americana, pelo formalismo russo, pela crítica estética, pela linguística e pela filosofia das formas simbólicas.

6. Citar muito e nunca a propósito. Uma bibliografia extensa é capital. Apoie a sua tese na autoridade dos especialistas, de preferência incompatíveis entre si.

7. A argumentação deve ser técnica, sem relação com as conclusões.

8. Não esqueça: o marxismo é um reducionismo, e está superado pelo estruturalismo, pela fenomenologia, pela estilística, pela nova crítica americana, pelo formalismo russo, pela crítica estética, pela linguística e pela filosofia das formas simbólicas.

9. Resolva sempre sem entrar no mérito da questão.

10. Para as questões de ontologia, Wellek; para as de forma Kayser,e ultimamente Todorov.

11. A psicanálise está menos superada que o marxismo, mas também é muito unilateral.

12. Não esqueça: o marxismo é um reducionismo, e está superado pelo estruturalismo, pela fenomenologia, pela estilística, pela nova crítica americana, pelo formalismo russo, pela crítica estética, pela linguística e pela filosofia das formas simbólicas.

13. Afrânio Coutinho e os Concretistas introduziram a crítica científica no Brasil.

14. Publique longos resumos de livros sem importância, convença o editor a traduzi-los e o leitor a lê-los. Há quase 700.000 universitários no país.

15. Um doutoramento vale ouro.

16. O semantema glúteo em linguística moderna tende à polissemia.

17. A crítica de nosso tempo é engajada e autêntica, e não descura de sua vocação profunda, de seu compromisso com o homem no que ele tem de eterno e no que tem de circunstancial, compromisso que irá cumprir resolutamente até o fim. Isto é que é importante.

18. Os livros editados pela Universidade de Indiana e importados pela livraria Pioneira são importantíssimos. Se pelo contrário você é de formação francesa, não deixe de aplicar o método de Chomsky e Propp. O resultado não se fará esperar.

19. Muito Cuidado com o óbvio. O mais seguro é documentá-lo sempre estatisticamente! Use um gráfico se houver espaço.



SCHWARZ, Roberto. O Pai de família e outros Estudos. Ed. Paz e Terra, 1970.

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Franz Kafka — Poseidon

Poseidon sentou-se em seu escritório, revisando as contas. A administração de todas as águas dava-lhe um trabalho insano. Ele poderia ter quantos assistentes desejasse, e de fato tinha um grande número deles, mas, como levava seu trabalho muito a sério, teimava repassar os olhos por todas as contas, e assim seus assistentes de pouco lhe valiam. Não se pode dizer que se divertisse com a função; ele a levava adiante simplesmente porque era o que lhe haviam atribuído; em verdade, com frequência, havia requisitado o que chamava de um trabalho mais alegre, mas sempre que várias sugestões lhe foram mostradas o resultado era que nenhuma delas lhe era adequada como o era sua presente ocupação. Desnecessário dizer, era muito difícil arrumar para ele uma outra profissão. Afinal, ele não poderia ser o responsável por um oceano em particular. Independentemente do fato de que num caso como este o volume de trabalho envolvido não seria menor, apenas mais aprazível, o grande Poseidon só poderia ocupar uma posição superior. E quando lhe foi oferecido um posto não relacionado com as águas, esta mera possibilidade fez com que ele se sentisse doente, sua divina respiração tornou-se escassa e seu peito de aço começou a arfar. Para falar a verdade, ninguém levou sua reação a sério; quando um homem poderoso se queixa espera-se que ele grite, por mais desesperante que seja o caso. Ninguém jamais, de fato, considerou a possibilidade de retirar Poseidon de sua posição; ele estava destinado a ser o Deus dos Mares desde os tempos imemoriais, e assim era que deveria prosseguir.

O que mais o entediava — e esta era a causa principal de seu desconforto com seu trabalho — era saber dos boatos que circulavam a seu respeito; por exemplo, que ele estava constantemente cruzando as ondas com seu tridente. E no entanto lá estava ele sentado nas profundezas do oceano do mundo revisando contas sem fim; uma viagem ocasional a Júpiter era a única interrupção desta monotonia, uma viagem no entanto da qual retornava invariavelmente furioso. Consequentemente, ele pouco viu dos oceanos, salvo a esquadra que o acompanhava à ascensão ao Olimpo, e na verdade nunca chegou a embarcar nela. Costumava dizer que estava adiando isso tudo até o fim do mundo, pois então deveria surgir um momento tranquilo quando, pouco antes do fim e tendo repassado a última conta, ele poderia ainda fazer uma rápida expedição pelos mares.

Fonte: Flávio Moreira da Costa, Viver de Rir. Ed. Record, 1995.

Milorad Pavić — Interpretação Total

Aprendi de cor a vida de minha mãe e, todas as manhãs, durante uma hora, interpreto-a diante dos espelhos, como no teatro. Isso continua dia após dia, há anos. Uso seus vestidos e seu leque e penteio-me como ela, trançando meus cabelos em forma de touca de lã. Imito-a também na presença dos outros e até no leito do meu bem amado. Nos momentos de paixão, não existo mais, sou ela apenas. Imito-a tão bem, então, que minha paixão desaparece, deixando lugar à dela. Desse modo, ela antecipadamente me roubou todas as carícias do amor. Mas não a censuro por isso, porque sei que também ela foi pilhada da mesma forma por sua mãe. Se alguém me perguntasse agora de que serve tal fogo, responderia: tento colocar-me no mundo de novo, tornando-me, porém, melhor…

Dicionário Kazar - Romance Enciclopédia em 100.000 palavras - edição feminina, PAVIC, Milorad; tradução Herbert Daniel, ed. Marco Zero, São Paulo, 1989.

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Maomé - A Mesa e a Pena de Luz para Escrever

Tal como criou seu trono, Deus criou uma mesa para escrever tão vasta que um homem poderia caminhar nela mil anos. E era a mesa feita de pérolas branquíssimas e as suas extremidades de rubis e o seu centro de esmeralda. Tudo o que nela escrevia era da mais pura claridade. Deus olhava para a mesa centos de vezes por dia e, cada vez que a olhava, construía e destruía, criava e matava… Tal como criou a mesa, Deus criou uma pena de luz para escrever, tão larga e longa que um homem a poderia percorrer, em largura ou comprimento, quinhentos anos. E, esta criada, Deus ordenou-lhe que escrevesse. Disse a pena «Que escrevo?» A ela respondeu, «Escreverás a minha sabedoria e todas as minhas criaturas, desde o princípio do mundo até ao seu fim».

O Livro da Escada de Maomé, cap. XX

Moacyr Scliar — Zap

Não faz muito que temos esta nova TV com controle remoto, mas devo dizer que se trata agora de um instrumento sem o qual eu não saberia viver. Passo os dias sentado na velha poltrona, mudando de um canal para outro - uma tarefa que antes exigia certa movimentação, mas que agora ficou muito fácil. Estou num canal, não gosto - zap, mudo para outro. Não gosto de novo - zap, mudo de novo. Eu gostaria de ganhar em dólar num mês o número de vezes que você troca de canal em uma hora, diz minha mãe. Trata-se de uma pretensão fantasiosa, mas pelo menos indica disposição para o humor, admirável nessa mulher.

Sofre, minha mãe. Sempre sofreu: infância carente, pai cruel etc. Mas o seu sofrimento aumentou muito quando meu pai a deixou. Já faz tempo; foi logo depois que nasci, e estou agora com treze anos. Uma idade em que se vê muita televisão, e em que se muda de canal constantemente, ainda que minha mãe ache isso um absurdo. Da tela, uma moça sorridente pergunta se o caro telespectador já conhece certo novo sabão em pó. Não conheço nem quero conhecer, de modo que - zap - mudo de canal. "Não me abandone, Mariana, não me abandone!" Abandono, sim. Não tenho o menor remorso, em se tratando de novelas: zap, e agora é um desenho, que eu já vi duzentas vezes, e - zap - um homem falando. Um homem, abraçado à guitarra elétrica, fala a uma entrevistadora. É um roqueiro. Aliás, é o que está dizendo, que é um roqueiro, que sempre foi e sempre será um roqueiro. Tal veemência se justifica, porque ele não parece um roqueiro. É meio velho, tem cabelos grisalhos, rugas, falta-lhe um dente. É o meu pai.

É sobre mim que fala. Você tem um filho, não tem?, pergunta a apresentadora, e ele, meio constrangido - situação pouco admissível para um roqueiro de verdade -, diz que sim, que tem um filho, só que não o vê há muito tempo. Hesita um pouco e acrescenta: você sabe, eu tinha de fazer uma opção, era a família ou o rock. A entrevistadora, porém, insiste (é chata, ela): mas o seu filho gosta de rock? Que você saiba, seu filho gosta de rock? Ele se mexe na cadeira; o microfone, preso à desbotada camisa, roça-lhe o peito, produzindo um desagradável e bem audível rascar. Sua angústia é compreensível; aí está, num programa local e de baixíssima audiência - e ainda tem de passar pelo vexame de uma pergunta que o embaraça e à qual não sabe responder. E então ele me olha. Vocês dirão que não, que é para a câmera que ele olha; aparentemente é isso, aparentemente ele está olhando para a câmera, como lhe disseram para fazer; mas na realidade é a mim que ele olha, sabe que em algum lugar, diante de uma tevê, estou a fitar seu rosto atormentado, as lágrimas me correndo pelo rosto; e no meu olhar ele procura a resposta à pergunta da apresentadora: você gosta de rock? Você gosta de mim? Você me perdoa? - mas aí comete um erro, um engano mortal: insensivelmente, automaticamente, seus dedos começam a dedilhar as cordas da guitarra, é o vício do velho roqueiro, do qual ele não pode se livrar nunca, nunca. Seu rosto se ilumina - refletores que se acendem? - e ele vai dizer que sim, que seu filho ama o rock tanto quanto ele, mas nesse momento -zap - aciono o controle remoto e ele some. Em seu lugar, uma bela e sorridente jovem que está - à exceção do pequeno relógio que usa no pulso - nua, completamente nua.

Fonte: MORICONI, Italo. Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século, Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Milorad Pavić — Sofia

Quando moço, apaixonei-me por uma jovem. Ela não me notava, mas fui perseverante e, certa noite, pude falar com Sofia (era seu nome) de meu amor com um tal ardor que ela me beijou, e senti-lhe as lágrimas em minha face. Pelo sabor das lágrimas, logo compreendi que era cega, mas isto em nada me perturbou. Permanecemos lá, enlaçados, quando ouvimos chegar do bosque próximo um galope de cavalo.
— É um cavalo branco cujo galope atravessa nossos beijos?  perguntou ela.
 Não sabemos  respondi  e saberemos somente quando ele sair do bosque.
 Nada compreendeste  disse Sofia, e no mesmo instante um cavalo branco saiu do bosque.
 Sim, sim, compreendi tudo  repliquei, e perguntei-lhe de que cor eram meus olhos.
 Verdes - disse ela.
 Ora, observai, tenho os olhos azuis...

Dicionário Kazar - Romance Enciclopédia em 100.000 palavras - edição feminina, PAVIC, Milorad; tradução Herbert Daniel, ed. Marco Zero, São Paulo, 1989.

Milorad Pavić — O Espelho Rápido e o Espelho Lento

ATEH (século IX) - Princesa kazar, cuja participação no debate que precedeu a conversão dos kazares foi decisiva. Seu nome significa entre os kazares "os quatro estados do espírito".

De noite, usava em uma das pálpebras uma letra, como aquelas que se inscrevem nas pálpebras dos cavalos antes da corrida. Essas letras pertenciam ao alfabeto kazar proibido, cujas letras matam logo depois de lidas. As letras eram traçadas por cegos e, pela manhã, antes da toalete, as criadas atendiam a princesa com os olhos fechados. Assim, ela ficava protegida de seus inimigos durante o sono. Para os kazares, o sono era o momento em que o homem é mais vulnerável.

Para distraí-la, seus criados trouxeram-lhe, certo dia, dois espelhos. Não eram muito diferentes dos outros espelhos kazares. Ambos eram feitos de sal polido, no entanto um era rápido e o outro lento. O que o espelho rápido tirava do futuro ao refletir o mundo, o espelho lento devolvia, pagando a dívida do primeiro, pois este atrasava em relação ao presente tanto quanto avançava o outro. Quando trouxeram os espelhos para a princesa Ateh, ela ainda estava no leito, e as letras inscritas nas suas pálpebras ainda não tinham sido apagadas. Ela viu-se nos espelhos com os olhos fechados e morreu imediatamente. Sucumbiu entre duas batidas de pálpebra, mais exatamente no momento em que leu pela primeira vez as letras mortais inscritas em suas pálpebras. Ela, piscara no momento precedente e no momento seguinte, e os espelhos refletiram isso. Morreu, fulminada ao mesmo tempo pelas letras do passado e pelas do futuro.



Dicionário Kazar - Romance Enciclopédia em 100.000 palavras - edição feminina, PAVIC, Milorad; tradução Herbert Daniel, ed. Marco Zero, São Paulo, 1989.

quinta-feira, 24 de julho de 2014

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Heinz von Foerster — A informação é o mais vicioso dos camaleões conceptuais.

Epígrafe encontrada no terceiro capítulo "A organização regenerada e generativa", no livro de Edgar Morin: O MÉTODO — 1. A NATUREZA DA NATUREZA, 2ª Edição, Publicações Europa América, 1977.


quarta-feira, 18 de junho de 2014

sexta-feira, 6 de junho de 2014

John Cage — Aqui estamos agora.

É simplesmente irritante pensar que se poderia estar em outro lugar. Aqui estamos agora.

Da série EPÍGRAFES (Citação de um autor, no frontispício de um livro, na abertura de um capítulo, para resumir-lhe o objeto ou o espírito.), neste caso foi encontrado no livro de Christopher Lasch, A Cultura do Narcisismo - A Vida Americana numa Era de Esperanças em Declínio. Capítulo I, O Movimento pela Conscientização e a Invasão Social do Eu.
Rio de Janeiro: Imago, 1983. 

sexta-feira, 30 de maio de 2014

segunda-feira, 19 de maio de 2014

segunda-feira, 5 de maio de 2014

Rubem Fonseca — do meio do mundo prostituto...

Rubem Fonseca - E do meio do mundo prostituto só amores guardei ao meu charuto. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.


quinta-feira, 27 de março de 2014

terça-feira, 18 de março de 2014

Julio Cortázar - Então ser como é pode não ser como é (...)

In Os Prêmios, 1975 — Tradução de Gloria Rodrigues.


John Steinbeck - Os livros não servem. Um homem precisa de alguém...


Of Mice and Men (Ratos e homens na tradução) é um livro escrito por John Steinbeck em 1937, que conta a história trágica de George e Lennie, dois trabalhadores rurais na Califórnia durante a Grande Depressão (1929-1939). A história se passa em um rancho a algumas milhas de Soledad no Salinas Valley.

quarta-feira, 5 de março de 2014

Herman Schmitz - Feito à Mão (Miniconto)



FEITO À MÃO

por Herman Schmitz


Não estou mais sozinho. A cada dia, mais e mais fantasmas juntam-se como uma multidão rotineira avançando sobre as vias já congestionadas dessas imagens fragmentadas na minha retina. A sensação do tempo praticamente acabou. Posso ir à vontade, para cima e para baixo, posso voltar o filme em qualquer direção que eu deseje, posso assinalar esse aqui e segui-lo como um cão sabujo. Essa aí de vermelho, por exemplo, eu sei que mora num pequeno apartamento na 56. São tantos pedestres pedindo a minha atenção que já perdi a conta e o tempo com isso.

A fase seguinte, é a das construções delicadas. Me apetecem várias formas de ornados, desde os parangolés até o mosaico português. Neles coloco essas pessoas, para dirigirem-se sempre nas mesmas posições, dentro dos mesmos motivos. Essa ordem geométrica as atrai como o mel às abelhas.

Seus movimentos então são perfeitamente distinguidos em cada hora do dia: de manhã, saem à rua e andam algumas quadras, descem escadas, entram em metros mais ou menos lotados, sobem por outras escadas e elevadores e pisam pisos de mármore ou granito e sentam-se frente a mesas e conversam animados e telefonam e digitam e falam, falam, falam... E eu os vejo daqui.

Observo as suas refeições, algumas no próprio escritório, outras em restaurantes animados, refrigerados, com deliciosos pratos sobre a mesa.

Observo todas as suas andanças, vejo também suas voltas e revoltas no trânsito apinhado. Enfim, vejo esses seus rostos pálidos sempre no mesmo itinerário, infinitas vezes como num jogo de espelhos convexos.

E a noitinha, os encontro novamente, aqui nestas ruas que se cruzam. Todos apressados e preocupados. De certa forma encantados além do meu desejo, já que não são mais frutos da minha imaginação, parecem mais uma foto, quer dizer, uma foto de uma pintura, sim, é isso, uma pintura, uma aquarela feita por algum pintor americano, ou se não, pelo menos alguém que pintou o que parece ser uma avenida em Nova Iorque, mas quem é esse pintor ordinário e estúpido que veio se mesclar no meu juízo, eu não quero saber. Eu não te conheço nem quero te conhecer. Maldito intruso.

Mais um dia está se passando. Mas para mim ainda é o mesmo dia de ontem. A mesma neblina pesada cobrindo o céu, os tons de amarelos escuros que se balançam com os tons de azul. Na direita em cima, na altura da placa de Don't Walk, o início da linha da perspectiva, que desce tão suavemente até o centro do quadro. Por outro lado, à esquerda no centro, logo atrás da moça de branco, há um casal parado, num aperto abraçado de tensão como em uma despedida ou um reencontro muito desejado.

Fora isso, tudo segue igual está: amorfo, individualizado, estilizado ao extremo, mas de um equilíbrio extremamente bem executado. Uma armadilha visual que te cega e hipnotiza, mas não a mim, que a tenho aprisionada em minha mente.